Em decisão histórica, Justiça argentina reconhece pessoas trans como vítimas de crimes contra a humanidade durante a ditadura

Guardas da polícia federal detêm homem durante marcha contra a ditadura em Buenos Aires em março de 1982
Guardas da polícia federal detêm homem durante marcha contra a ditadura em Buenos Aires em março de 1982 — Foto: Daniel Garcia/AFP

Pela primeira vez, um tribunal argentino condenou dez repressores da última ditadura militar à prisão perpétua pela perseguição e violação dos direitos humanos de pessoas trans presas no centro de detenção clandestino “Poço de Banfield”, na província de Buenos Aires, entre 1976 e 1983. Trata-se do caso “Las Brigadas”, o maior julgamento de crime contra a humanidade na região e o primeiro que, em quase 40 anos de processo judicial, incluiu mulheres trans no grupo de pessoas que foram “foco de ataque” durante os sete anos de ditadura.

Em um extenso veredito que incluiu os crimes cometidos contra um total de 605 vítimas, o Tribunal Oral Federal (TOF) nº 1 de La Plata, na capital da Província de Buenos Aires, julgou as dez pessoas culpadas de privação ilegítima de liberdade, agravado abuso sexual, tortura e redução à servidão de oito mulheres trans. Os atos são considerados imprescritíveis por serem “crimes contra a humanidade no quadro de um genocídio”.

Esta importante decisão surge dois dias após o presidente Javier Milei divulgar um vídeo no qual negava a existência de um plano sistemático de extermínio entre 1976 e 1983, considerando as ações ditatoriais como uma resposta a grupos guerrilheiros, na qual “caíram pessoas inocentes”. Já na sua campanha eleitoral, Javier Milei tinha expressado, parafraseando o ditador Emilio Massera, que, na década de 1970, o que houve na Argentina foi “uma guerra” em que as forças do Estado cometeram “excessos”. O período ditatorial foi massivamente repudiado pelo povo argentino, que foi às ruas no domingo, no âmbito de uma nova comemoração do Dia da Memória da Verdade e da Justiça.

“A justiça teria sido se isso nunca tivesse acontecido conosco, mas acho que ainda é um acontecimento histórico para todos os meus companheiros que morreram no caminho”, disse Julieta González, uma das sobreviventes, ao final da leitura do veredicto no tribunal. “Tivemos que esperar 47 anos por isso e, honestamente, as feridas que se tem não podem ser apagadas por ninguém. Os 14 dias em que me sequestraram no Poço de Banfield e me estupraram, em que nos trataram como se fôssemos um pedaço de carne, arruinaram minha vida”, seguiu Valeria del Mar Ramírez, a primeira delas a testemunhar neste julgamento.

Entre novembro de 2022 e abril de 2023, as sobreviventes trans Carla Fabiana Gutiérrez e Paola Leonor Alagastino também testemunharam da Itália perante este tribunal. Elas estao exiladas no país europeu desde a década de 1980. Além delas, Analia Velázquez e Marcela Viegas Pedro também testemunharam.

Foram necessários mais de 40 anos para que fossem conhecidos os seus testemunhos, que ficaram à margem da memória do país.

A sentença desta tarde soma-se às mais de 300 proferidas no âmbito deste processo que começou em 1985 e continua, apesar das tentativas de o impedir, até aos dias de hoje. Durante estes anos, mais de 1,2 mil pessoas foram condenadas em julgamentos de crimes contra a humanidade que são símbolo internacional.

“A resposta ao negacionismo são todos os julgamentos que foram realizados desde o fim da impunidade com penas exemplares e entre os quais o de hoje é muito emblemático”, disse o ex-chefe da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Horacio Pietragalla, ele próprio apropriado durante a ditadura e depois recuperado pelas Avós da Plaza de Mayo. “Além das provocações do governo nacional, do vídeo publicado, o que importa e o que se falará daqui a 40 anos serão essas sentenças”, acrescentou.

A sentença foi emitida pelos juízes Ricardo Basilico, que preside a TOF 1, Esteban Rodríguez Eggers e Walter Antonio Venditti, no âmbito do processo que unificou os crimes cometidos nos centros clandestinos de detenção, tortura e extermínio Poço de Banfield, Poço de Quilmes e El Inferno, localizado na província de Buenos Aires, que formava o mesmo circuito repressivo. São três dos 230 centros que funcionaram no território durante o período. No julgamento, que iniciou seu debate oral em 27 de outubro de 2020, mais de 500 pessoas prestaram depoimento e foram considerados os casos correspondentes a 605 vítimas.

Em 2022, o juiz federal Ernesto Kreplak, encarregado da investigação de casos contra a humanidade em La Plata, processou Juan Miguel Wolk por perseguir, deter e torturar — entre outros crimes — pelo menos oito mulheres trans no Poço de Banfield entre 1976 e 1983. Wolk é considerado o chefe deste centro clandestino. Mais tarde, se fingiu de morto e escapou da prisão domiciliar. Também foram processados o ex-ministro de Buenos Aires Jaime Lamont Smart, e os ex-militares Federico Antonio Minicucci, Guillermo Alberto Domínguez, Jorge Antonio Bergés, Roberto Armando Balmaceda, Carlos María Romero Pavón, Jorge Héctor Di Pasquale, Luis Horacio Castillo e Alberto Julio Candioti. Todos foram condenados na tarde desta terça-feira à prisão perpétua, exceto Candioti, que recebeu a pena de 25 anos de prisão.

Pela primeira vez, os casos de mulheres trans raptadas no âmbito deste plano criminoso foram abordados “como parte de uma violência sistemática, mas também invisível”. Isto foi considerado pelo Ministério Público, que considerou fundamental “ter em conta o que viveram porque este processo nunca os teve em conta”.

Foi a pedido e investigação do Ministério Público, composto pelos procuradores-gerais Hernán Schapiro e Gonzalo Miranda e pelos procuradores Ana Oberlin e Juan Martín Nogueira, que na sua argumentação final expressaram que as mulheres trans “foram submetidas à máquina do terrorismo de Estado, assim como as outras pessoas vitimizadas” e tiveram os seus direitos esmagados por “todo o tipo de humilhação”.

Os advogados consideraram que estas mulheres faziam parte “do povo considerado inimigo” pela ditadura, precisamente porque “não se enquadravam no modelo sexo-gênero que a ditadura procurava garantir, e isso significava que sofriam adicionalmente não só a violência geral do as pessoas que estavam no Poço de Banfield, mas também a violência diferencial, precisamente devido às suas identidades de género”.

No Poço de Banfield, que hoje funciona como Espaço de Memória, pelo menos 440 pessoas foram sequestradas, das quais 170 foram assassinadas ou desapareceram, segundo dados recolhidos por organizações provinciais. Ficou comprovado também que funcionou como maternidade clandestina, onde nasceram pelo menos oito bebês entre 1976 e 1977, e seis deles recuperaram a identidade durante a democracia. Alguns deles testemunharam a leitura da sentença esta tarde no tribunal de La Plata.

Durante o julgamento, uma das sobreviventes trans declarou ter testemunhado um parto no banheiro deste centro clandestino. “Ouvi uma mulher gritar e um soldado veio correndo e disse a ela: ‘deite-se aqui, está chegando’. Senti um bebê chorar e então (o soldado) disse para a mulher: ‘Limpa toda a sujeira que é sua, você conseguiu.’ Então vi que um soldado pegou o bebê. Não sabia se era menino ou menina, depois descobri que era menina”, lembrou Valeria del Mar Ramírez.

Em novembro de 2022, Valeria foi a primeira mulher trans a testemunhar sobre a prisão que sofreu no final de 1976 e outra no início de 1977. “Tive vergonha, tive medo que não acreditassem em mim. Tudo o que fizeram comigo e a humilhação é muito forte, por isso não declarei (antes)”, expressou durante seu depoimento. Sobre o que viveu durante a detenção no Poço de Banfield, o que até a obrigou a “disfarçar-se de homem” durante algumas décadas, garantiu que foi um “inferno”.

“Eles queriam sexo e se não houvesse sexo éramos espancadas”, disse Paola Alagastino, detida quando tinha 17 anos. “Para comer tínhamos que pedir que nos dessem as sobras e tínhamos que pagar com sexo”, acrescentou Fabiana Gutierrez, que tinha apenas 14 anos quando foi sequestrada pela primeira vez neste centro clandestino.

Os vestígios, em todos os casos, repetem-se: um deles, talvez o mais presente, é a memória dos gritos de “jovens que foram espancados e torturados”.

“A morte era continuamente sentida, ouviam-se os gritos das pessoas que recebiam aguilhões. Homens, mulheres e crianças que choravam e pediam ‘mãe, não me abandone’”, lembrou Analia Velázquez, que tinha pouco mais de 20 anos quando foi presa ilegalmente. “Foi uma provação. Colocaram-me uma ligadura, atiraram-me para uma cama, amarraram-me e deram-me 220 (eletricidade)”, declarou Marcela Viegas Pedro, que nessa altura tinha acabado de completar 15 anos.

Os militares que administravam aquele local clandestino forçaram as mulheres trans presas a realizar serviços domésticos e trabalhos forçados, como quebrar tijolos, durante dias, “sem nem saber para que serviriam”. Elas eram encarregadas de lavar os Ford Falcons “cheios de sangue” que chegavam ou limpar os quartos “após uma sessão de tortura”. No veredicto, o tribunal culpou os repressores por reduzi-las à servidão.

Enquanto os repressores seguiam a sentença por videochamada em prisão domiciliar, centenas de pessoas reuniram-se na esplanada do Tribunal Oral Federal n.º 1 para responder ao Governo que “a memória já está completa”: é aquela que nestas quatro décadas de democracia foram construídas a partir dos testemunhos corajosos daqueles que sobreviveram e relataram o terror.

No aniversário de 48 anos do golpe militar na Argentina (1976-1983), a Casa Rosada divulgou, neste domingo, um vídeo questionando fatos históricos sobre a ditadura, incluindo o número de 30 mil vítimas do regime, como adiantado pelo O GLOBO. A publicação foi compartilhada no X pelo presidente argentino, Javier Milei, que pediu o que classificou de “memória completa” do período “para que haja verdade e justiça”.

Batizado de “Dia da Memória pela Verdade e Justiça”, o vídeo, em formato de mini-documentário, foi produzido por Santiago Oría, documentarista e um dos estrategistas por trás da imagem de Milei. A peça abre com uma citação do autor tcheco Milan Kundera (de “A insustentável leveza do ser”), morto em julho do ano passado, que foi filiado ao Partido Comunista na juventude, mas se tornou um dos maiores críticos do sistema após a Primavera de Praga e a invasão do país pela União Soviética em 1968.

No vídeo, O escritor Juan Bautista “Tata” Yofre lê um trecho de uma obra do escritor tcheco: “para liquidar as nações, o primeiro passo é tirar-lhes a memória”, sugerindo, em contexto diverso do original, que a história da ditadura argentina não teria sido “contada de forma completa”.

Na sequência, surge María Fernanda Viola, filha de um militar assassinado por guerrilheiros dois anos antes do início do regime militar. Ela questiona as organizações de direitos humanos, afirmando que ela e seus irmãos não foram acolhidos após a morte do pai. E argumenta que pessoas “de ambos os lados” foram mortas. Viola conta ainda que foi “impedida pelo kirchnerismo” de prestar homenagem ao pai no cemitério.

O ex-guerrilheiro Luis Labraña aparece no vídeo afirmando que teria sido ele o responsável por inventar o número de 30 mil desaparecidos, “como forma de garantir o financiamento das Mães e Avós da Praça de Maio”, principal grupo em defesa dos familiares das vítimas desaparecidas na ditadura. Os 30 mil são amplamente usados por movimentos sociais, e pelo Registro Unificado de Vítimas do Terrorismo de Estado, que levantou o número de vítimas e reconhece a subnotificação dos dados oficiais.

Filha de militar que lutou na Guerra das Malvinas, a vice-presidente argentina, Victoria Villaruel, é, desde a campanha presidencial, uma das mentoras do revisionismo histórico de Milei. Advogada, ela defendeu militares denunciados por crimes cometidos durante a ditadura. E foi, de acordo com a mídia argentina, uma das responsáveis pelo vídeo publicado neste domingo. Antes da publicação nas redes oficiais da Casa Rosada, ela fez uma postagem na qual cobrou a “reparação às vítimas do terrorismo” usando a #NãoForam30000.

Durante a campanha, a vice-presidente argentina se referiu às Mães da Praça de Maio como “mães de terroristas”.

— Esperamos que [o dia 24 de março] seja um dia de paz e reflexão para todos — declarou o porta-voz do governo, Manuel Adorni.

Nos debates presidenciais do ano passado, Milei já havia negado que a ditadura argentina tenha sido responsável pelo “desaparecimento” de 30 mil pessoas, como sustentam ONGs locais, entre elas as Mães e Avós da Praça de Maio. Segundo ele, o país viveu uma guerra, na qual o Estado “cometeu excessos”. A fala do então candidato provocou reações imediatas, mas Milei jamais recuou.

Fonte: O Globo

© 2024 Blog do Marcos Dantas. Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução total ou parcial do conteúdo deste site sem prévia autorização.