Em carta, comandante da Marinha critica projeto de deputado petista que inclui João Candido como Herói da Pátria

O almirante de esquadra Marcos Sampaio Olsen, comandante da Marinha, tenta barrar homenagem a João Cândido
O almirante de esquadra Marcos Sampaio Olsen, comandante da Marinha, tenta barrar homenagem a João Cândido — Foto: Cristiano Mariz e Reprodução / Prefeitura de São João de Meriti

O comandante da Marinha, almirante Marcos Sampaio Olsen, enviou uma carta à presidência da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados na qual se manifesta de modo contrário à inclusão do nome de João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata, no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. A homenagem ao marinheiro já foi aprovada no Senado e agora é debatida na Câmara. O projeto de lei contestado é de autoria do deputado federal Lindbergh Farias (PT-RJ) e tem como relatora na Casa a deputada Benedita da Silva (PT-RJ), ambos correligionários do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, responsável pela nomeação de Olsen para chefiar a Força.

No ofício assinado na segunda-feira e encaminhado ao deputado federal Aliel Machado (PV-PR), o comandante afirma que incluir Cândido ou “qualquer outro participante daquela deplorável página da história nacional” seria como transmitir, em particular aos militares, a mensagem de que é lícito “recorrer às armas que lhes foram confiadas para reivindicar suposto direito individual ou de classe”.

“Os castigos físicos levados a cabo nos navios, pratica inaceitável, sob perspectiva alguma, e absolutamente incompatível com os caros preceitos morais observados pela sociedade contemporânea, foram reconhecidos, posteriormente, como equivocados e indignos, e os insurgentes, inclusive, anistiados. Porém, resta notável diferença entre reconhecer um erro e enaltecer um heroísmo infundado”, diz a carta assinada por Olsen.

O comandante pede que os deputados rejeitem a inclusão e afirma que a Força Naval “não vislumbra aderência da atuação de Cândido na Revolta dos Marinheiros com os valores de heroísmo e patriotismo”. Segundo o documento, a posição do líder no conflito representa um “flagrante que qualifica reprovável exemplo de conduta para o povo brasileiro”.

“Nos dias atuais, enaltecer passagens afamadas pela subversão, ruptura de preceitos constitucionais organizadores e basilares das Forças Armadas e pelo descomedido emprego da violência de militares contra a vida de civis brasileiros é exaltar atributos morais e profissionais, que nada contribuirá ao pleno estabelecimento e manutenção do verdadeiro Estado Democrático de Direito”, finaliza o comandante.

O documento está disponível no site oficial da Marinha e foi lido pelo assessor chefe da assessoria de relações institucionais da Força durante sessão da Comissão de Cultura da Câmara desta quarta-feira.

Ao GLOBO, a Marinha do Brasil afirmou que a colocação do comandante na carta representa o posicionamento da Força.

Já o deputado Aliel Machado disse que “vai conversar” com os deputados Carlos Gilberto (PL-PB), que apresentou o ofício na sessão desta quarta-feira, e Benedita da Silva para ver se os parlamentares “chegaram a um entendimento” sobre o caso, que ainda precisa ser apreciado pela comissão.

Filho de ex-escravos, João Cândido nasceu em 1880 e se alistou na Marinha aos 14 anos. Mesmo após a abolição da escravatura, em 1888, os soldados negros, muitas vezes recrutados à força, continuaram sendo mal alimentados, recebendo salários insignificantes e punições físicas abusivas.

Cândido conseguiu se destacar como timoneiro e em 1909 foi treinado no Reino Unido para manejar dois novos navios de guerra adquiridos pelo Brasil, que representavam o que havia de mais moderno em tecnologia militar.

O processo de modernização da Marinha apenas alimentou ainda mais a frustração dos marinheiros negros maltratados. Depois que um membro do navio de Cândido foi punido em 1910 com 250 chicotadas – o que deixou suas costas como um “peixe eviscerado”, como disse um oficial branco –, mais de dois mil marinheiros negros iniciaram o motim.

Liderados por Cândido, apelidado de “Almirante Negro”, os marinheiros capturaram quatro navios e apontaram 80 canhões para a cidade do Rio de Janeiro. “Não toleraremos mais a escravidão na Marinha do Brasil”, escreveram ao então presidente Hermes da Fonseca.

Após quatro dias de tensões, o governo aboliu as punições com chicotadas e prometeu anistia aos rebeldes. No entanto, a Marinha prendeu e executou membros da revolta. Cândido e outras 30 pessoas acabaram em uma pequena cela em condições tão duras que apenas ele e mais um prisioneiro sobreviveram. Ele viveu o resto de sua vida na pobreza.

Desde a morte de Cândido em 1969, o Brasil viu seu legado com novos olhos. Em 2008, o governo concedeu-lhe anistia póstuma e uma estátua foi erguida em sua homenagem no Praça Marechal Âncora, no Centro do Rio. Em novembro, o Ministério Público Federal exigiu da Marinha uma indenização para a família do almirante.

Em 2024, o “almirante negro” foi retratado no desfile da escola de samba Paraíso do Tuiuti por Max Ângelo dos Santos, o entregador que foi agredido a chicotadas em São Conrado, na Zona Sul do Rio, no ano.

No mês passado, o Ministério Público Federal (MPF) reforçou o pedido de anistia e reparação para Cândido. Em parecer enviado ao Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) nesta terça-feira, o órgão demonstra a perseguição sofrida pelo líder da Revolta da Chibata — morto em 1969 — e ataques à sua memória até a abertura democrática. O documento encaminha requerimento formulado pelo filho do militar, Adalberto Nascimento Cândido, à Comissão de Anistia da pasta.

Fonte: O Globo

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