Drones e trincheiras: guerra se divide entre disputa tecnológica no ar e ritmo estagnado no solo

Militar ucraniano em trincheira na cidade de Marinka
Militar ucraniano em trincheira na cidade de Marinka — Foto: Tyler Hicks/The New York Times

A guerra na Ucrânia acontece em ritmos diferentes na terra e no ar. A quase estagnação no front, onde avanços de poucos quilômetros vêm sendo anunciados como importantes conquistas territoriais em batalha que lembra a Primeira Guerra Mundial, contrasta com a tecnologia das dezenas de drones-bombardeiros e mísseis de cruzeiro que cortam o céu de Kiev a Moscou diariamente, desafiando a defesa antiaérea.

Embora mais lento na linha-de-frente, o conflito está mais ativo do que nunca, com ataques planejados nos centros de decisão política e militar de Kiev e Moscou se refletindo no campo de batalha, segundo especialistas consultados pelo GLOBO. Contudo, as características da guerra mudaram a cada fase, sugerindo até mesmo um certo “envelhecimento” em certos teatros de operação.

— O que Vladimir Putin começou a desenvolver na Crimeia, em 2014, foi uma guerra híbrida, também chamada de 4ª geração, que utiliza meios difusos como forças paramilitares e instituições civis, com o Estado em si participando de forma velada. Em 2022, a invasão de larga escala foi uma tentativa de blitzkrieg moderna, uma guerra de movimento, usando todo o aparato militar e tecnológico russo, o que deu errado. Agora, a dinâmica do conflito parece ter retrocedido, em muitos aspectos, para uma guerra de trincheiras — detalhou o professor de Relações Internacionais Gunther Rudzit, da ESPM-SP.

Embora aponte que o quadro, sobretudo na frente de batalha, seja similar ao formato que marcou a virada do século XIX para o XX, com foco no uso de trincheiras, infantaria e artilharia, Rudzit adverte que os fatos que se impõem no dia a dia no Leste Europeu não podem se limitam a uma classificação teórica, com vários elementos dividindo espaço nos teatros de operações.

A primeira das imposições é o próprio terreno em que a batalha se desenrola. Desde o começo da guerra, sobretudo o clima é apontado como um fator-chave para determinar a velocidade das campanhas militares. O inverno do Hemisfério Norte, no fim do ano passado, congelou a até então bem-sucedida contraofensiva ucraniana para recuperar os territórios ocupados pelos russos, como Kharkiv, Kherson e até mesmo no Donbas, empurrando os russos cada vez mais para Oeste.

O clima congelante, que inviabilizou as rápidas ações, deu o tempo que Moscou precisava para organizar suas defesas. Camadas sucessivas de trincheiras e campos minados e de obstáculos foram implantadas de norte a sul, cobertas por peças de artilharia reposicionadas. Quando Volodymyr Zelensky anunciou a nova contraofensiva, em junho deste ano, a situação no solo era bem diferente do fim do ano passado, o que limitou os avanços.

Para manter sua campanha de propaganda positiva sobre os esforços de guerra ucranianos, Zelensky alardeou como conquistas pequenos movimentos no solo, incluindo avanços na área ainda em disputa de Bakhmut (palco de uma das batalhas mais sangrentas da guerra, protagonizada pelo Grupo Wagner), no Nordeste, e a tomada de Robotyne, em Zaporíjia, que autoridades russas dizem ter abandonado intencionalmente por não ter nenhum peso estratégico.

Em contrapartida, a Rússia conseguiu tomar parcialmente a cidade de Kupiansk, na região de Kharkiv, forçando as tropas ucranianas a recuarem para a margem ocidental do Rio Oskil, assumindo uma posição mais defensiva.

O ritmo mais lento no front tem colocado à prova o apoio do Ocidente à causa ucraniana, que começa a dar sinais de descontentamento e desgaste. Em um dos acenos mais fortes, no mês passado, o chefe de gabinete de Jens Stoltenberg, secretário-geral da Otan, chegou a declarar publicamente que a Ucrânia deveria desistir de parte de seu território em troca da paz e de entrar para o bloco — o que foi rapidamente descartado por Zelensky e retratado pela cúpula da organização.

De acordo com Peter Dickinson, editor do think-tank americano Atlantic Council em Kiev, a estratégia russa no campo de batalha é prolongar o conflito, a fim de levar a Ucrânia ou seus aliados à exaustão:

— O Exército Russo construiu defesas muito fortes e, basicamente, fica atrás delas, lutando para manter o que conseguiu, cerca de 20% da Ucrânia, território do tamanho de muitos países europeus. A esperança de Putin é que a Ucrânia se canse e que o Ocidente se canse de apoiar a Ucrânia.

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Durante um fórum econômico realizado na Rússia no começo da semana, Putin deu um raro panorama e estimou que a Ucrânia já havia perdido cerca de 71 mil soldados durante a atual contraofensiva, e que não fosse em caso de exaustão, Kiev utilizaria qualquer cessar-fogo russo para reorganizar suas tropas e planejar novos ataques. Para o presidente russo, apenas quando Kiev parar com sua “proibição autoimposta” à negociação.

Mesmo em Washington, que tem alimentado o antagonismo com Moscou de forma mais acirrada desde o começo da guerra, sinais de cansaço aparecem. Em uma declaração recente, o chefe do Estado-maior dos EUA, Mark Milley, disse que a ofensiva era “lenta”, com “muitas perdas de um lado e do outro”, classificando-a como um “êxito parcial”. Dias depois a Casa Branca emitiu um comunicado mais otimista, parabenizando Kiev pelos avanços significativos.

No cálculo político de Putin, na avaliação dos analistas ouvidos pelo GLOBO, o líder russo espera principalmente o resultado das eleições americanas, que poderia reconduzir à Casa Branca Donald Trump, que já declarou que acabaria com a guerra assim que assumisse o cargo, ou que o humor do eleitorado sobre a guerra mude.

— A Rússia não atingiu seu principal objetivo político-estratégico do começo da guerra, que era “desnazificar” a Ucrânia, o que na retórica do Kremlin quer dizer derrubar o governo e retomar o país para sua área de influência — disse o mestre em Ciências Militares Paulo Filho. — Moscou diminuiu suas ambições desde a invasão, e provavelmente aceitaria uma saída em que ficasse com os territórios que ligam à Rússia a Crimeia.

O atrito na linha de frente não significa que o conflito ficou travado. Se a guerra tem características que lembram o começo do século em uma frente, o uso de tecnologia aérea — incluindo veículos não tripulados — mostra a face mais moderna do conflito. Ainda de acordo com Dickinson, o uso de tecnologia aérea não foi uma decorrência das dificuldades em solo: o investimento em drones é estratégia de longo prazo, que levou em conta a capacidade da indústria de tecnologia do país em produzir os equipamentos mais baratos que artilharia aérea.

— As pessoas olham para a linha-de-frente e apontam que há pouco avanço. Mas é importante compreender o que está acontecendo por detrás das linhas inimigas — afirmou Dickinson. — A Ucrânia está destruindo as peças de artilharia russas uma por uma, além de mirar em linhas de suprimento e outras posições inimigas, como foi no caso da base aérea de Pskov.

O objetivo de curto prazo da Ucrânia, segundo os analistas, seria dividir as tropas russas no sul do país em duas frentes, rompendo o “corredor russo” que liga a região fronteiriça de Luhansk à Crimeia por terra, cortando Zaporíjia e Kherson. Os ataques contra a ponte sobre o estreito de Kerch, na Crimeia, também seria parte do plano de isolar os territórios ocupados no sul. (Com agências internacionais)

Fonte: O Globo

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