Decisões judiciais mandam USP aceitar candidatos pardos e abrem debate sobre comissões que avaliam a raça de candidatos

Comissão avalia os candidatos que passaram para a UFRJ por cotas: em 2021, havia 75 universidades públicas com colegiados deste tipo
Comissão avalia os candidatos que passaram para a UFRJ por cotas: em 2021, havia 75 universidades públicas com colegiados deste tipo — Foto: Custódio Coimbra

Processos judiciais em que dois estudantes pedem para entrar na USP pelo sistema de cotas, depois de terem a matrícula recusada por não serem considerados pardos, geraram questionamentos sobre a eficácia das comissões de heteroidentificação que aferem a raça dos aprovados por essa reserva de vagas. Coordenadores dessas comissões e especialistas defendem que as comissões são necessárias para coibir fraudes, mas admitem que é preciso apostar em constante melhorias para diminuir a subjetividade das decisões e evitar erros.

Coordenadores dessas comissões e especialistas defendem que as comissões são necessárias para coibir fraudes, mas admitem que é preciso apostar em constante melhorias para diminuir a subjetividade das decisões e evitar erros.

A reserva de vagas para pessoas pretas e pardas em instituições de ensino superior existe em escala federal desde 2012, mas não há uma legislação definindo o funcionamento dessas bancas, e cabe às instituições ou normas estaduais criarem seus próprios critérios para aferir se o candidato é de fato preto ou pardo.

De acordo com a pesquisa mais recente do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), em 2021 havia 75 universidades públicas com comissões do tipo, sendo a maioria (58) instituições federais.

No caso de Alison dos Santos Rodrigues, que quer cursar Medicina, a Justiça deu um prazo de cinco dias, a contar da segunda-feira, para que a instituição explique a recusa. No de Glauco Dalalio do Livramento, a USP reativou ontem a vaga no curso de Direito para o estudante de 17 anos, atendendo a uma liminar da Justiça. Mas pode ser uma vitória provisória, porque em 2017, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade das bancas de heteroidentificação em concursos públicos. O entendimento é usado na Justiça para validar as bancas também em vestibulares de universidades públicas.

Por vezes, os tribunais decidem que as comissões são soberanas, em outros os juízes avaliam fotos e vídeos para dizer se a pessoa é preta ou parda e se faz jus à cota.

O funcionamento e a composição das bancas variam a depender da universidade, mas o critério geralmente é fenotípico: um candidato é considerado negro ou pardo a partir da cor de sua pele, da textura de seus cabelos e dos traços de seu rosto, ou seja, tem a ver com a aparência e não com a ascendência — não importa se o pai ou mãe da pessoa é negra ou parda. Já no caso de indígenas, a avaliação é por meio de documentação.

Na USP, por exemplo, uma comissão de cinco membros, composta por docentes, estudantes escolhidos pelos Coletivos Negros da USP, um representante da sociedade civil organizada que atue na defesa das ações afirmativas e um funcionário técnico-administrativo eleitos avaliam as fotos de candidatos que se autodeclaram negros e pardos na hora de prestar o vestibular. Em caso de dúvida, essas pessoas são chamadas para uma avaliação presencial. Já no caso das universidades federais da Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e de Brasília, por exemplo, todos os candidatos passam pela banca de heteroidentificação presencial.

O tradutor Daniel Yoshioka, de 32 anos, viu o sonho de estudar Ciência Sociais na USP se despedaçar quando a comissão de heteroidentificação negou sua matrícula por não considerar que ele era pardo, conforme sua autodeclaração quando fez a prova da Fuvest. Ele conta que se enxergou a vida inteira como pardo, e descreveu suas experiências em uma carta que fez para a banca em seu recurso – que foi negado no último dia 26 de fevereiro.

— Foi um processo que me deixou bastante indignado, porque não teve muita conversa. E de certa forma, fez eu me questionar sobre minha avaliação de mim mesmo. Em que sentido essa avaliação não me considerou pardo? Me bateu uma insegurança, um questionamento de “será que eu vivi uma vida diferente?”. Eu não imaginei as coisas que passaram na minha vida e o mundo que sempre me tratou como se eu fosse pardo – falou.

Jefferson Bellarmino, pesquisador associado do GEMAA e professor visitante na Penn State University, afirma que as comissões são positivas porque elas podem evitar fraudes nas cotas. Entretanto, ele aponta problemas na falta de um padrão nacional para a prática, o que favorece erros especialmente quando se trata da categoria pardo.

— Precisamos de mecanismos para que essa abordagem de fato iniba pessoas brancas. É preciso discutir uma regulamentação, há problemas procedimentais que precisam ser resolvidos. Como lidar com a categoria pardo? Um dos mecanismos possíveis é que, em caso de dúvida, as pessoas pardas sejam aprovadas, que a dúvida jogue em favor da inclusão e não da exclusão. — aponta.

Ele sugere que o país crie um grande grupo de trabalho para discutir uma regulamentação, e ainda destaca que é importante que as instituições sejam mais transparentes em relação aos resultados dessas comissões de heteroidentificação.

— As universidades precisam mostrar de fato se as políticas estão sendo efetivas, elas estão barrando pessoas brancas? É uma política que tem sua validade, mas precisa de parâmetros concretos muito bem estabelecidos. A gente não sabe se as pessoas indiscutivelmente brancas estão sendo barradas. Os resultados precisam ser cada vez mais transparentes, assim como os procedimentos, para que essas questões sejam sobrepujadas. Isso depende necessariamente de uma política que homogeneíze os critérios. A política de cotas quando foi criada, foi muito criticada, mas criamos parâmetros que hoje funcionam muito bem — acrescenta.

Cassia Maciel, pró-reitora de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil da Universidade Federal da Bahia (UFBA), afirma que a autodeclaração é “um procedimento, político-institucional e pedagógico” pois faz com que a população pense na sua declaração racial pela ótica do fenótipo, já que “a questão racial no brasil está muito calcada na aparência”. Mas afirma que, sem as comissões de heteroidentificação, havia muitas fraudes nas cotas. Ela aponta que, em 2019, de mil pessoas que passaram pela banca, 100 tiveram a autodeclaração indeferida. Desses, metade entrou com recurso.

Na universidade todos os procedimentos são presenciais, em que a cada vez grupos de oito candidatos são posicionados em frente a uma banca composta por cinco membros, entre docentes, técnicos e pessoas ligadas ao movimento negro. Os candidatos respondem apenas a uma pergunta: “Como você se autodeclara?”. Cada integrante da comissão vota, e os resultados só são divulgados posteriormente. Em caso de dúvidas, os membros discutem entre si após a saída dos candidatos.

— A ideia do ‘caso difícil’, que é o da pessoa parda em que não há unanimidade, é um percentual muito pequeno. Mas isso não coloca o procedimento em questionamento, até porque a pessoa pode entrar com recurso e, depois, buscar o Judiciário. Mas o procedimento é indispensável, incontornável para garantir que a vaga seja reservada para quem ela está destinada. Na minha visão, os erros são exceção. Não por isso detêm menor importância, são relevantes para discussão, mas não para colocar em xeque o procedimento — opina.

Edilson Nabarro, coordenador na Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que a comissão de heteroidentificação foi adotada na instituição em 2018 após uma denúncia massiva de fraudes nas cotas raciais. Lá, uma comissão formada por três pessoas, entre professores e estudantes, avalia se a autodeclaração espelha ou não a realidade, com base apenas no critério fenotípico. Mas neste ano, a instituição está fazendo uma nova experiência: para pós-graduação, na fase de recurso, os candidatos podem fazer uma entrevista e mostrar elementos como fotos de familiares para tentarem reverter uma decisão negativa.

Ele afirma que a banca é “essencial” para garantir que as vagas sejam destinadas a quem de fato faz jus a elas, pois quando uma pessoa é vítima de injúria racial ou racismo, fica “inequívoco quem é negro ou não no Brasil”, portanto em sua visão “cabe ao poder público zelar pelos objetivos da política pública de cotas nas universidades”. Nabarro aponta que a política sempre pode ser aperfeiçoada, mas afirma que é difícil estabelecer critérios nacionais objetivos para as bancas por conta das diferenças regionais.

— Aqui no Rio Grande do Sul, há um contraste mais explícito, por conta de aspectos que são próprios da formação étnica e cultural de cada região, de ter menos negros e muitos descendentes de alemães e italianos. Objetivamente, não tem como criar um padrão de eficiência absoluta. Mas há o recurso para mediar situações de injustiça, e de qualquer forma, é o custo da eficiência de uma política pública inovadora. É uma política nova de redução de danos. Tem coisas que tem que aperfeiçoar, mas o que não pode é cair numa situação de desconfiança da efetividade da política por conta de alguma falha aqui e ali em comissões de identificação — pondera.

Emanuel Freitas, coordenador do núcleo de acompanhamento da política de cotas da Universidade Estadual do Ceará (UECE), aponta que todos os membros das comissões de heteroidentificação — composta por cinco pessoas — passam por oficinas e treinamentos sobre raça e como deixar a avaliação o mais objetiva possível.

— Esse processo exige a compreensão de como se dão as fraudes, então o avaliador precisa ficar atento a processos de bronzeamento, adereços que podem tentar produzir uma certa negritude. O pardo é sinônimo do miscigenado, e a sociedade brasileira é predominantemente parda. Ocorre que esse sujeito pode ser pardo mais inclinado ao negro ou ao branco, e as comissões precisam saber identificar se aquele sujeito é um sujeito pardo que compõe a população de negros — aponta.

Fonte: O Globo

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