Decisão que suspendeu vídeos em que policiais narram agressões amplia debate sobre limites da liberdade de expressão

PMs no Pavão-Pavãozinho para a instalação de UPP: entrevistado em um dos canais admitiu que agrediu uma grávida durante operação
PMs no Pavão-Pavãozinho para a instalação de UPP: entrevistado em um dos canais admitiu que agrediu uma grávida durante operação — Foto: Marcelo Carnaval/30.11.2009

Uma decisão da Justiça Federal do Rio de Janeiro determinando a suspensão de 13 vídeos de quatro canais de conteúdo policial no YouTube ampliou a discussão sobre os limites à liberdade de expressão em casos de conteúdos violentos. Nos vídeos, agentes admitem agressões que cometeram em serviço. Para o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU), autores da ação que levou à retirada das gravações, os programas incitavam crimes e disseminavam discurso de ódio. Mas advogados especialistas consultados pelo GLOBO se dividiram sobre o alcance da decisão.

A liminar da juíza Geraldine Vidal publicada ontem impede o acesso a conteúdos dos canais Copcast, Fala Glauber, Café com a Polícia e Danilsosnider. Entre os conteúdos suspensos, há vídeos intitulados “Fiquei sem controle no Bope”, “Cachorro Louco conta como quebrou quatro em favela”, “Eu fui pro tático para matar ladrão”, “O Bope sobe assim para pegar vagabundo de bobeira” e “Matei o dono da favela no primeiro serviço”.

Até a noite de ontem, ainda havia sete vídeos no ar, todos do Copcast. Os canais somam milhões de inscritos e de visualizações. Além de entrevistas com policiais, há conteúdo para estudantes de concursos públicos.

A ação civil pública tem como réus os youtubers Jocimar dos Santos Ramos, Glauber Cortes Mendonça, Kauam Pagliarini Felippe e Danilo Martins Barbosa da Silva, que seriam os donos dos canais, além do Estado do Rio de Janeiro e do Google, proprietário do YouTube. Mas no caso do Copcast, um dos entrevistadores, que se apresenta como Pracinha, informou ao GLOBO ser o verdadeiro dono do canal, e não Jocimar.

Em um dos vídeos suspensos, transcrito na sentença, um PM, identificado como sargento Britto, descreve o espancamento de um homem e as agressões a uma mulher grávida durante a operação que implementou a UPP no morro do Pavão-Pavãozinho:

“O maluco tipo assim viu a cena, cresceu. Aí eu descontrolei. Foi agressividade descontrolada. O maluco veio pra cima, eu peguei e já comecei pau, pau, porrada”, disse Brito, enquanto mostrava com gestos os socos. “O maluco tomando, caindo no chão, eu segurando a cara dele, dando, aí eu já fiquei cego. Aí eu sei que veio uma mulher, veio uma grávida, veio mais gente, eu peguei a mulher e joga a mulher pra lá, e a grávida foi pra lá e a grávida voltou, eu enrolei ela pelo cabelo e tomou (gesto de tapa), voou longe”, acrescentou o policial.

Britto foi condenado a pagar cestas básicas por causa das agressões, fato que já ocorreu “diversas vezes”, conforme admitiu na entrevista.

A juíza destacou outra conversa em que um policial conta como agrediu um homem que considerou ter comportamento agressivo: “Aí eu falei: ah, então tu é maluco mesmo? aí o maluco olhou pra mim: ‘É, por quê’? Aí, eu vou testar se tu é maluco mesmo”, relatou o policial, rindo. “Eu agarrei o cara, seguramos as duas orelhas dele assim, aí pegamos a cabeça dele e começamos a dar na parede. Pá! Pá! Abriu aqui né”, detalhou o agente, enquanto fez um gesto de risco na testa. “O sangue descendo. Aí a mulher: ah, ele vai matar ele, vai matar ele! Solta ele! Aí eu soltei ele, o maluco ficou lá meio caído”, detalhou.

Para Vital, as declarações excederam “os limites do regular exercício da liberdade de expressão para, frontal e imotivadamente, disseminar discurso de ódio”. A juíza lembrou que pedidos de remoção de conteúdo on-line têm sido frequentes e citou o entendimento do STF de que a liberdade de expressão “não constitui meio que possa legitimar a veiculação de insultos ou de crimes contra a honra de terceiros”.

A sentença ainda destaca que o conteúdo é impróprio “por contemplar aparente violação a direitos humanos de diversas ordens” e que o perigo de dano “se materializa pela amplitude de acesso, constante e diário, ao conteúdo”.

Responsável pelo canal Danilsosnider, Daniel Martins afirmou que cumpriu a decisão “antes mesmo dela ser publicada”. Segundo Martins informou por mensagem ao GLOBO, o podcast “tem como intuito que policiais relatem a sua história levando para valorização do trabalho policial e para o bom humor”. Ele ressalvou que não tem “acesso ao controle e veracidade das histórias” e disse que não incentiva a violência policial.

Pracinha, que diz ser o dono do canal Copcast, afirmou que ainda não foi intimado, mas que recorrerá da decisão. Para justificar que o conteúdo não é de disseminação de ódio, usou um argumento contrário ao de Martins e alegou que os vídeos narram episódios verdadeiros, registrados em delegacias e, em alguns casos, até resultaram em condenações, como caso narrado por Britto.

— São situações reais, de troca de tiro, de discussões. Foram registrados, alguns podem ter ido a julgamento. O Sargento Britto diz no final da história que foi condenado e pagou pelo erro dele. Que perdeu o controle e perdeu a mão. Até hoje ele paga indenização. Se foi transitado em julgado, pode falar sobre o assunto — argumenta Pracinha, que não é policial, e conta que criou o canal como uma forma de “valorizar a Polícia Militar”.

O proprietário do Copcast ainda comparou seu conteúdo com obras audiovisuais que trazem histórias reais de crimes.

— Quando a Elize Matsunaga fala do assassinato que cometeu, ela está praticando crime de ódio? Não, né. Quando o MC Chefinho canta que tem que fechar a Avenida Brasil para roubar carro-forte, é incitação à violência? — compara.

Procurados, os outros donos de canais não retornaram o contato do GLOBO. A Polícia Militar do Rio respondeu que não compactua com discursos de ódio e apologia a qualquer tipo de violência, acompanha os casos com e “trabalha para atualizar as normas internas de uso de mídias sociais, adequando à legislação vigente e decisões judiciais”.

Professor de Direito do Ibmec e sócio de Mannrich e Vasconcelos Advogados, Marco Sabino afirmou não enxergar ódio dirigido a minorias nos relatos. O advogado acredita que o debate sobre os vídeos deveria ser sobre incitação à violência.

Advogado e integrante do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Carlos Nicodemos sustenta que os vídeos são ilegais devido ao fomento à violência. Nestas circunstâncias, explica, o direito à liberdade de expressão tem de ser relativizado.

— Dentro de um sistema de freios e contrapesos, existe o que denominamos de ponderação de direitos e de interesses. Quando concorrem a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, há de se afastar o mau exercício de um direito para que se preservem os outros. O discurso de ódio estimula crime, atentando contra a dignidade e a vida — diz.

— É de mau gosto. Mas o fato de eu não gostar não me dá o direito de proibir. Se efetivamente tem audiência, e narra o que acontece, tem caráter público — afirma Sabino, que não enxerga um “perigo real e iminente” que justifique condenação por incitação à violência, mas sugere uma classificação indicativa para os podcasts. — Se ofender alguém, cabe indenização. Mas não a proibição aos policiais relatarem o que aconteceu.

A juíza negou o pedido do MPF e da DPU de indenizações de R$1 milhão do Google e de R$ 200 mil dos youtubers por danos morais coletivos. A ação também requisitou que o Google faça fiscalização e moderação do conteúdo e o governo do Rio inclua um regulamento sobre “discurso de ódio ou perigoso” por policiais, e “adote providências disciplinares com relação aos casos mencionados”.

Descrito como o “primeiro podcast para concurseiro policial do YouTube”, é comandado por Glauber, policial penal federal. No Instagram, a página do canal tem 294 mil seguidores. Além de histórias de agentes, o canal traz entrevistas com autoridades e analistas sobre diversos temas relacionados à segurança. Há dois meses, o secretário de Segurança Pública do Rio, Victor Santos, foi um dos convidados.

Comandado por Danilo Snider, o videocast viralizou com a entrevista com o sargento Cavalcanti, da Rota, da Polícia Militar de São Paulo, que contou quando “enquadrou” Mano Brown, dos Racionais MC’s. Em outro — os dois vídeos não fazem parte dessa ação do MPF e DPU —, um sargento e um soldado se gabam do número de pessoas que “derrubaram” em ação.

Canal comandado pelo “Pracinha Nascimento”, é focado em entrevistas com policiais e ex-policiais. Pracinha diz que criou o canal para “valorizar a Polícia Militar do Rio”. Foi o canal com mais vídeos suspensos pela ação: sete. No mais assistido deles, com 5,5 milhões de visualizações, Evandro Guedes, ex-policial militar e CEO da Alfacon, escola preparatória para concursos, diz que foi preso após ameaçar um médico que não queria realizar cirurgia de cesárea na sua mulher durante trabalho de parto.

Ex-policial civil de Santa Catarina, Kauam Pagilarini diz que largou a corporação para se dedicar à produção de conteúdo. Além de entrevistar policiais, Pagilarini dá dicas de estudos, de preparação para concursos públicos e de treinos físicos.

Fonte: O Globo

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