‘Convites homossexuais’: entenda por que negar serviço por conta de orientação sexual é crime

Ateliê se nega a fazer convite de casamento para casal gay em SP
Ateliê se nega a fazer convite de casamento para casal gay em SP — Foto: Reprodução

O caso de um casal gay que teve a prestação de serviços negada por uma empresa em São Paulo com a justificativa de que a loja não confecciona “convites homossexuais” por questões de “princípios religiosos” incorre em crime de homofobia, segundo especialistas ouvidos pelo GLOBO. O Procon também prevê no Código de Defesa do Consumidor que comerciantes não podem escolher para quem vende seus produtos, baseando-se na origem, raça, sexo, cor, idade ou orientação sexual do cliente.

Após a repercussão do caso na segunda-feira (22), a Jurgenfeld Ateliê se pronunciou alegando que não se trata de “homofobia ou qualquer tipo de preconceito, mas sim de princípios e valores”. O advogado Rogério Teles da Silva, presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB de Rondônia, explica, no entanto, que por ser um país laico, no Brasil nenhuma pessoa pode se valer da religião para negar serviços ou discriminar alguém por sua orientação sexual.

Desde 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) enquadra a homofobia e a transfobia no crime de racismo. Conforme a decisão da Corte, “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito” em razão da orientação sexual da pessoa poderá ser considerado crime. A pena é de um a três anos, além de multa. A medida é válida até o Congresso Nacional aprovar uma lei que atenda especificamente o público LGBTQIA+.

— No caso da loja em São Paulo houve uma discriminação explícita ao dizer que não atende pessoas homossexuais. A liberdade religiosa existe, mas ela não é superior aos direitos humanos fundamentais previstos no Código Civil. Hoje, a homofobia é criminalizada na Lei de Racismo, que proíbe todo e qualquer tipo de distinção de cor, raça, idade, orientação sexual e identidade de gênero — explica Silva. — Além disso, o Código de Defesa do consumidor determina como prática abusiva recusar o atendimento do cliente quando há estoque — complementa.

De acordo com a advogada Ceres Rabelo, professora de direito constitucional e de direitos humanos, o Procon prevê em seu Artigo 39, inciso 2 do Código de Defesa do Consumidor, que o comerciante não pode escolher para quem vende seus produtos. O órgão considera essa distinção como “prática abusiva” e, em caso de reincidência de denúncia, pode ordenar o fechamento do estabelecimento.

— Logo após a Constituição Federal de 1988, o Código de Defesa do Consumidor estabeleceu que as empresas seriam penalizadas com multa pela prática de discriminação. Nesses casos, é sempre indicado fazer um Boletim de Ocorrência para registrar a queixa e para as autoridades poderem dar início a uma investigação do caso, que pode culminar na penalização e até criminalização dos autores — explica a advogada.

De acordo com Rabelo, o estabelecimento até pode segmentar sua área de atuação, desde que isso não ocorra de maneira discriminatória. Nos casos em que há segmentação, a loja deve informar de maneira clara qual serviço ele presta. A especialista explica ainda que a loja só pode se recusar a realizar um atendimento caso o cliente solicite um produto que fira os direitos humanos ou seja considerado ilegal.

O casal Henrique Nascimento e Wagner Soares, que teve o pedido de orçamento de convite de casamento negado por uma loja por ser gay, registou um boletim de ocorrência por homofobia nesta quarta-feira (24). A Polícia Civil de São Paulo instaurou um inquérito para apurar o caso.

Conforme explicado pelo presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB de Rondônia, o registro da ocorrência visa uma responsabilização criminal do ato. Nesta esfera, as autoridades policiais vão ouvir as vítimas e os comerciantes a fim de coletar provas. Após finalizar o inquérito, o caso será encaminhado ao Ministério Público, que pode arquivar ou oferecer denúncia do caso. Se for oferecida denúncia, cabe ao Tribunal de Justiça dar a sentença.

Além do âmbito criminal, o advogado explica que as vítimas podem entrar com pedido de reparação por danos morais.

A deputada federal Erika Hilton (PSOL) pediu que o Ministério Público de São Paulo investigue a denúncia feita pelo casal. Segundo a parlamentar, “não há justificativa que não seja discriminatória para que um casal homossexual seja impedido de encomendar convites de casamento”.

“Sim, os empresários tem direito à religião deles, isso é um direito constitucional essencial. Mas não existe na nossa legislação o direito à discriminação à qualquer pessoa ou forma de família, inclusive as homoafetivas”, escreveu a deputada.

Juntos há oito anos, os noivos contaram ao GLOBO que estão “muito abalados” com a situação, em especial com a “coragem e audácia” da empresa em assumir o motivo da recusa em realizar o serviço. A empresa, que diz seguir princípios cristãos, se pronunciou alegando que não se trata de preconceito, “mas sim de princípios e valores”.

De acordo com Henrique, esta foi a primeira vez que o casal sofreu homofobia de forma tão evidente. O primeiro contato com o ateliê aconteceu via WhatsApp na segunda-feira, quando o produtor de eventos pediu orçamento para seu convite de casamento, que está agendado para setembro de 2025. No dia seguinte, a loja respondeu solicitando detalhes do modelo desejado e Henrique encaminhou alguns links junto a informações como nome do casal, quantidade de convites e local do evento. A partir daí, a empresa visualizou a mensagem e não respondeu, mas depois afirmou que não faz “convites homossexuais” e que “seria bacana” que o casal procurasse “uma papelaria que atenda sua necessidade”.

— Nós conhecemos essa empresa por meio de uma plataforma que dá dicas de fornecedores renomados. Esse ateliê já havia ganhado prêmios e nos interessamos pelo trabalho deles, mas não esperávamos esse tipo de tratamento. Depois que eles disseram que não fazem convites homossexuais eu comecei a chorar muito — relata Henrique. — Dói saber que a loja teve a coragem e a audácia de externar o preconceito, mesmo sendo crime.

Em prints divulgados nas redes sociais, é possível ver que nas mensagem Henrique encaminha modelos de convites e afirma que “amou” e “quer fazer”. O contato foi feito às 9h38 da manhã e, como não obteve resposta, ele enviou outra mensagem por volta de 15h. Quase uma hora depois, a loja respondeu pedindo desculpas e afirmando que não fazem “convites homossexuais” e que “seria bacana você procurar uma papelaria que atenda sua necessidade”.

Henrique rebateu a mensagem da loja, afirmando que “uma empresa não pode fazer assepsia de pessoas”. Ele e o noivo disseram ter ficado “chocados e entristecidos” com o ocorrido. Um boletim de ocorrência foi feito pelo casal na madrugada desta quarta-feira (24).

“É com grande decepção que expressamos nossa profunda insatisfação com a recusa em fornecer serviços para o nosso casamento, simplesmente por sermos um casal homossexual. Ficamos chocados e entristecidos ao sermos informados de que nossa orientação sexual era um motivo para negar nossos convites de casamento”, escreveu Henrique.

Em uma primeira nota publicada no perfil da loja, que foi apagada pela empresa após a repercussão do caso, o dono reafirma o posicionamento de não fazer fotografia de casamentos e nem eventos homossexuais. Segundo ele, a empresa tem negado “muitos serviços” a casais homossexuais. Na legenda do post, o ateliê chegou a sugerir ainda a existência de uma “heterofobia”, que seria um suposto preconceito contra pessoas heterossexuais.

“Existe ‘heterofobia?’ Está aí uma pergunta que deveria ser introduzida nos livros de filosofia desse século (…) Hoje, chegamos ao nosso ápice. Não aguentamos mais ter que aguentar tantas críticas e questionamentos sobre o fato de não realizarmos casamento ou eventos homossexuais”, diz a nota.

— A nossa família nos ama muito, sempre nos acolheram. Vamos nos casar para comemorar nossa união de 10 anos e esse episódio foi o primeiro em que nos sentimos rejeitados — desabafa. — A empresa tem todo o direito de não querer fazer os convites, mas assumir que é porque somos gays é discriminação — completa.

O GLOBO procurou o ateliê por meio de seu perfil nas redes sociais, mas não obteve retorno.

Fonte: O Globo

© 2024 Blog do Marcos Dantas. Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução total ou parcial do conteúdo deste site sem prévia autorização.