Concurso Nacional Unificado: cota de gênero e direcionamento por CEP criam polêmica

Esplanada
No concurso, serão selecionados 6.640 funcionários públicos para 21 órgãos públicos federais: 5.948 para cargos de nível superior e 692 para de nível médio

As inscrições para o CNU (Concurso Nacional Unificado), batizado como “Enem dos Concursos”, se encerraram última 6ª feira (9.fev.2024), mas as polêmicas estão longe de acabar. Os editais foram lançados para preenchimento de 6.640 vagas em 21 órgãos federais, com remunerações iniciais de R$ 5.200 a R$ 22.900 (cargo de nível superior) e de R$ 4.000 a R$ 7.400 (cargo de nível intermediário).

Com dimensão nacional e salários atraentes, os editais dos 8 Blocos preveem a mesma cláusula de origem (CEP): a “critério do órgão de lotação do cargo, será dada preferência para os candidatos aprovados moradores da cidade onde houver vaga” (item 11.3.1). A possibilidade abre espaço para direcionamento nas convocações dos aprovados, o que pode ser usado para beneficiar este ou aquele CPF, com inaceitável prejuízo de outros candidatos com melhor desempenho na classificação nacional.

Oportuno dizer que este também é o espírito da Proposta de Emenda à Constituição nº 490, de 2010, apresentada com objetivo de reservar percentual de cargos e empregos públicos aos residentes de cidades com até 20 mil habitantes, que representam 70% dos Municípios brasileiros, com vistas a gerar oportunidades de emprego e de uma vida melhor para os brasileiros que residem em pequenos Municípios.

A cláusula editalícia cria discriminação em razão de origem e critério espacial, em situação muito semelhante às Leis aprovadas pelo Estado do Amazonas e pelo Distrito Federal para reservar, respectivamente, 80% e 40% das vagas das Universidades e faculdades públicas aos alunos que cursaram ensino fundamental e/ou ensino médio na rede pública dos referidos entes da Federação. Tais leis foram invalidadas pelo STF (Supremo Tribunal Federal), que declarou a inconstitucionalidade em sede do Recurso Extraordinário nº 614.873 e na ADI nº 4868, a despeito de haver, ao menos em relação ao Amazonas, indiscutível disparidade regional.

A reserva de vagas em concursos públicos é outro desafio a ser enfrentado, dado o previsível expansionismo das demandas em uma sociedade plural. Adotar a reserva de vagas em cargos e empregos públicos como remédio apenas para este ou aquele grupo considerado vulnerável é incentivo para que outros grupos sociais e de Parlamentares busquem instituir outras reservas, numa via infinita.

Além do desafio legislativo, é preciso enfrentar os atalhos pela via judicial. Embora não haja sequer lei com previsão de reserva de vagas para os grupos que integram a população LGBTQIAPN+, o MPF (Ministério Público Federal) ajuizou ação civil pública para questionar a ausência de cota para pessoas transexuais e travestis no Edital do CNU para o cargo de maior remuneração, de auditor-fiscal do trabalho.

Na ação, que tramita na 2ª Vara Federal no Estado do Acre, pede-se a condenação da União ao pagamento de R$ 5 milhões por danos morais coletivos pelo fato de o Ministro do Trabalho e Emprego e o Presidente da República terem afirmado publicamente que implementariam cota de 2% para transexuais no concurso público para o cargo mencionado. Segundo o MPF, tal fato “gerou legítima expectativa na comunidade e a consequente quebra da confiança e boa-fé depositadas na Administração Pública, decorrente do comportamento contraditório do Poder Público”.

A ação não apresenta parâmetros para a cota e até menciona decisão que determinou ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística incluir marcadores “orientação sexual” e “identidade de gênero” no censo de 2022, o que não ocorreu. Isso não significa que a população LGBTQIAPN+ não enfrente desafios no acesso a bens sociais que lhe proporcionem melhores condições para disputar cargos e empregos públicos ou privados. Mas não é o único grupo vulnerável, no total de pelo menos nove, conforme apontado em estudo realizado em 2012.

Os problemas não se limitam à cota. A multa proposta pelo MPF representa 18,37% do orçamento federal destinado à pauta LGBTQIA+ em 2024, de pouco mais de R$ 27,2 milhões, o que corresponde a 84% do total de investimentos da série histórica no período 2015-2024 (de R$ 32,58 milhões). Os gastos federais com a pauta no período de 2015 a 2023 foi de R$ 5,36 milhões pouco mais do valor da multa.

O expansionismo na reserva de vagas em concurso público, inaugurada pela lei nº12.990/2014, é uma das consequências práticas desconsiderada durante o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41.

Com exceção das pessoas com deficiência, cuja reserva de vagas tem previsão constitucional, os demais casos instituídos por lei desconsideram a restrição prevista no regime constitucional dos servidores públicos civis (art. 7º, XXX c/c art. 39, § 3º), que proíbe, taxativamente, a adoção de diferença de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. Frise-se que a vedação tem sido usada de forma casuística apenas nas ações de admissão de cargos militares e literalmente sonegada nas discussões dos cargos civis a que se destina.

Num contexto de menor rigor com a cláusula constitucional restritiva, era previsível que a flexibilização do instituto do concurso público de ampla concorrência geraria uma corrida desenfreada por novas reservas. Ocorre que a combinação de hipóteses é ilimitada numa sociedade plural e com desafios socioeconômico-culturais que se refletem nas condições de vida e de oportunidades de emprego de diversos grupos considerados tecnicamente vulneráveis.

Tanto que o Congresso Nacional aprecia, pelo menos, 11 projetos de lei e uma PEC para instituir múltiplas reservas de vaga em concursos públicos – com previsão de cotas e subcotas – sob a perspectiva de gênero (mulher e pessoas transgênero e não-binárias), raça (negro, indígena, amarelo e branco), idade (jovem, adulto e idoso), população de baixa renda, origem geográfica, população do município (até 20 mil habitantes) e até mesmo distribuir 100% dos cargos públicos dos órgãos e entidades federais segundo parâmetros que levem em consideração o resultado atualizado do censo geográfico.

Esse movimento expansionista também foi verificado com o julgamento do piso nacional do magistério, que acabou por desencadear uma verdadeira corrida constitucional, com destaque para o Piso Nacional da Enfermagem e todo seu reflexo financeiro e fiscal nos setores público e privado. Levantamento realizado pelo Poder360, em 2023, identificou 148 projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional para criação de piso nacional para 59 categorias profissionais diferentes.

Ao abrir o ano do Judiciário de 2024, o presidente do STF citou as ações afirmativas implementadas para garantir maior paridade para mulheres e pessoas negras na magistratura, o que envolve a distribuição de bolsas de R$ 3.000 durante a preparação para o concurso público de ampla concorrência. No Poder Executivo, a Advocacia Geral da União lançou o Programa Esperança Garcia nos mesmos moldes e com os mesmos propósitos.

As iniciativas são muito bem-vindas e certamente contribuirão para mudar o perfil demográfico das instituições constitucionais. Porém, a estratégia não pode se limitar aos órgãos jurídicos, relegando a fiscalização a uma fragmentação ilimitada de cotas para acesso a cargos públicos tão relevantes quanto os cargos jurídicos.

Fonte: Poder360

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