Como Julian Assange virou pesadelo para os EUA e ‘símbolo’ da liberdade de informação; veja linha do tempo

Apoiadores de Julian Assange participam de protesto em Vienna, na Áustria
Apoiadores de Julian Assange participam de protesto em Vienna, na Áustria — Foto: JOE KLAMAR/AFP

Julian Assange, detido no Reino Unido há quase cinco anos, tornou-se um pesadelo para Washington e ao mesmo tempo um símbolo da liberdade de informação para muitos. O governo dos Estados Unidos o acusou de espionagem — alegações associadas à publicação de material confidencial de inteligência e de defesa no site Wikileaks. Segundo documentos judiciais divulgados nesta segunda-feira, o fundador do WikiLeaks concordou em se declarar culpado em um tribunal dos Estados Unidos por revelar segredos militares, em troca da sua liberdade, encerrando uma longa novela legal.

Assange é casado e tem dois filhos com Stella Moris, que integrava a equipe jurídica que trabalhava para ele. O maior desafio era justamente evitar a extradição para os EUA, um risco presente desde a revelação dos primeiros documentos sigilosos pelo Wikileaks — promotores americanos queriam processá-lo por pelo menos 18 acusações, incluindo espionagem, pela divulgação de 700 mil documentos sigilosos dos EUA.

Segundo Edward Fitzgerald, um dos advogados do australiano, a pena poderia chegar a 175 anos de prisão. Ele aponta ainda que Assange está sendo processado por “fazer um trabalho jornalístico”, uma alegação repetida por organizações de defesa dos direitos humanos e da liberdade de expressão, como a Repórteres Sem Fronteiras.

Se a vida de Julian Assange foi movimentada nos últimos anos, também foi atribulada durante a sua infância e juventude, que não foram fáceis. O fundador do WikiLeaks nasceu em 1971 em Townsville, no Nordeste da Austrália, sem conhecer o pai, John Shipton, até os 25 anos, porque a sua mãe se separou dele antes do nascimento de Julian.

A mãe teve um novo relacionamento, com Brett Assange, de quem o fundador do WikiLeaks herdou o sobrenome, mas de quem a mulher se separou quando o menino tinha oito anos. Na primeira infância, Julian Assange levou uma vida “nômade”, já que sua mãe e seu padrasto fundaram uma companhia de teatro e viviam viajando.

Após a segunda separação, sua mãe se casou e teve outro filho com um músico, Leif Meynell, membro de uma seita na qual Assange vivia. Mas Meynell cometeu abusos físicos contra sua mãe, e os dois acabaram fugindo.

Atraído pela computação de forma autodidata, entre 2003 e 2006 estudou Física e Matemática, além de Filosofia, na Universidade de Melbourne, sem concluir nenhuma graduação. Isso não o impediria de criar uma página na Internet, como o WikiLeaks, que se tornou uma dor de cabeça para a maior potência do mundo — em 2021, o site Yahoo News revelou que a CIA, a principal agência de inteligência dos EUA, chegou a discutir planos para “matar ou sequestrar” Assange, como algumas opções para lidar com a crise.

O australiano criou em 2006 um veículo de comunicação sem fins lucrativos chamado WikiLeaks, que publicou, segundo o próprio site, mais de 10 milhões de documentos confidenciais, fornecidos por fontes anônimas. Entre suas maiores revelações está um ataque aéreo, no dia 12 de julho de 2007 em Bagdá, quando jornalistas iraquianos e vários civis foram mortos por disparos feitos por militares americanos, a bordo de um helicóptero.

Os Estados Unidos depararam-se subitamente com um veículo de comunicação que revelou os documentos secretos vazados do Pentágono sobre as suas operações no Iraque e no Afeganistão, assim como a correspondência secreta do governo e das suas embaixadas em todo o mundo.

O WikiLeaks entrou em cena em 2010, quando passou a publicar informações secretas sobre a atividade militar americana no Iraque e no Afeganistão ao longo de vários meses. Em julho, publicou um arquivo com seis anos de documentos militares confidenciais sobre a guerra no Afeganistão. Depois, divulgou um segundo montante de relatórios secretos, desta vez sobre a Guerra do Iraque, em outubro.

No mês seguinte, publicou 250 mil telegramas diplomáticos confidenciais americanos que mostravam os bastidores das negociações entre Estados Unidos e aliados durante a “guerra ao terror” lançada pelo governo de George W. Bush depois do 11 de Setembro.

Nos anos recentes, Assange passou a ser criticado nos meios democratas nos Estados Unidos por supostamente procurar beneficiar a Rússia com vazamentos de material confidencial. Em 2016, ele divulgou, por exemplo, e-mails da campanha de Hillary Clinton obtidos quando hackers russos invadiram computadores do Comitê Nacional Democrata.

Parte do material sobre as guerras no Afeganistão e no Iraque foi entregue ao WikiLeaks pela soldado Chelsea Manning — na época Bradley Manning —, presa e condenada em 2013 nos EUA a 35 anos de prisão por violação da Lei de Espionagem. Manning passou sete anos na cadeia, até ser indultada em 2017 pelo então presidente Barack Obama.

Entre agosto e setembro de 2010, Assange foi alvo de acusações de estupro e abuso sexual feitas por duas mulheres na Suécia, onde havia morado. A Suécia pediu a extradição dele ao Reino Unido, a fim de interrogá-lo. Ele disse temer que a Suécia o entregasse aos Estados Unidos e prometeu lutar contra o pedido de extradição.

Quando o WikiLeaks atingiu o pico de popularidade com os vazamentos, a Suécia exigiu a prisão de Assange sob duas acusações, uma por estupro de uma mulher e outra por assédio sexual, durante uma visita a Estocolmo para participar em uma conferência. Assange negou as alegações, mas foi foi submetido à prisão domiciliar na região rural da Inglaterra, até que, em maio de 2012, a Suprema Corte britânica concordou com sua extradição para a Suécia.

Os advogados de Assange contestaram essa decisão, argumentando que ele não receberia um julgamento justo na Suécia.

No mês seguinte, Assange conseguiu burlar a vigilância à qual estava sendo submetido e, ao invés de se apresentar às autoridades, apareceu na embaixada do Equador em Londres, onde se refugiou por sete anos, com o aval do presidente Rafael Correa — ele chegou a receber a cidadania equatoriana.

A decisão deixou Assange confinado na missão: se ele deixasse o edifício, seria preso pela polícia britânica.

O Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, encarregado de verificar a implementação de tratados sobre direitos civis, determinou em janeiro de 2016 que o Reino Unido e a Suécia haviam arbitrariamente detido Assange, e que deveriam restaurar sua liberdade de ir e vir e compensá-lo. O comitê disse que os promotores suecos não haviam acusado formalmente o australiano e que nunca haviam mostrado provas contra ele. A decisão foi desconsiderada pelos dois países, e Assange permaneceu na embaixada.

Promotores suecos, com a ajuda do Equador, interrogaram Assange por quatro horas na embaixada em Londres, em novembro de 2016. Seu advogado sueco, Per E. Samuelson, não foi convocado para comparecer, e a validade do depoimento foi questionada.

Lenín Moreno é eleito presidente do Equador em 2017 e rompe com seu antecessor e ex-aliado Rafael Correa, que havia concedido o asilo a Assange. Moreno disse que deixaria o australiano permanecer na embaixada, mas passou a negociar o fim do asilo com o Reino Unido. Também chamou Assange de hacker, reduziu seu acesso à internet e o advertiu a não fazer declarações políticas.

Em maio de 2017, os promotores suecos anunciaram que encerrariam a investigação de estupro contra Assange. A procuradora-geral, Marianne Ny, deixou claro que isso não significava que ele estava sendo declarado inocente. Ny disse que prosseguir com o caso exigiria que Assange fosse notificado das acusações contra ele e que ele estivesse presente em um tribunal sueco, o que era impossível.

No Reino Unido, Assange ainda enfrenta um mandado de prisão por não comparecer à Justiça depois que sua extradição foi aprovada. A Polícia Metropolitana de Londres disse que o prenderia se ele tentasse deixar a embaixada. Os advogados do australiano tentaram derrubar o mandado de prisão duas vezes, mas em ambas foi derrotado na Justiça.

No início de 2018, o Equador anunciou que havia tomado medidas para acabar com o longo impasse diplomático, incluindo a concessão da cidadania a Assange em dezembro, alguns meses depois de ele ter solicitado. Dias depois, o Equador pediu que o Reino Unido concedesse imunidade diplomática a Assange para que ele pudesse deixar a embaixada, mas o pedido foi recusado. O governo equatoriano então disse que buscaria um mediador para ajudar a negociar um possível acordo que o liberaria para deixar o prédio.

Em 2 de abril de 2019, o presidente equatoriano Lenín Moreno, que rompeu com o seu antecessor, afirma que Assange violou o acordo sobre as suas condições de asilo. No dia 11, Assange é preso na embaixada pela polícia britânica.

De imediato, o advogado da mulher que acusa Assange de estupro na Suécia anuncia que iria solicitar a reabertura da investigação, arquivada em 2017. Os fatos relativos ao outro processo, por agressão sexual, tinham prescrito em 2015. No dia 1º de maio, Assange é condenado a 50 semanas de prisão por um tribunal de Londres por ter violado as condições da sua libertação provisória.

No dia 13 daquele mês, o Ministério Público de Estocolmo anunciou a reabertura da investigação de estupro.

Em 23 de maio de 2019, o sistema de Justiça americano, que já o havia acusado de “hackeamento de computadores”, indiciou-o por outras 17 acusações ao abrigo de leis anti-espionagem. Assange poderia pegar até 175 anos de prisão. No dia 31, o relator da ONU sobre tortura, após se reunir com o australiano na prisão, considerou que ele apresentava “todos os sintomas de tortura psicológica”. No início de novembro, o relator afirma que o tratamento dispensado a Assange coloca a sua vida “em perigo”.

No dia 21 de outubro, o fundador do WikiLeaks aparece pessoalmente pela primeira vez no Tribunal de Westminster, confuso e balbuciante.

Em 19 de novembro, o Ministério Público sueco anunciou o abandono da investigação de estupro devido à falta de provas.

No dia 24 de fevereiro de 2020, a Justiça britânica começa a analisar o pedido de extradição dos EUA, que é adiado devido à pandemia. Assange confirma a sua recusa em ser extraditado. Sua parceira, a advogada Stella Morris, alerta que entregá-lo aos Estados Unidos levaria a uma “pena de morte”.

Em 4 de janeiro de 2021, a juíza Vanessa Baraitser indeferiu o pedido, considerando que as condições de reclusão nos Estados Unidos poderiam implicar risco de suicídio. O sistema de Justiça britânico decide mantê-lo detido.

Em 12 de fevereiro de 2021, Washington recorre da negação da extradição. A audiência de apelação começa em 27 de outubro. O advogado que defende os interesses americanos rejeita que haja risco de suicídio, afirmando que, se fosse extraditado, Assange não seria detido na prisão especial de alta segurança ADX, em Florença (Colorado), que receberia os cuidados médicos e psicológicos necessários e que ele poderia solicitar o cumprimento de sua pena na Austrália.

Mas o advogado de Assange insiste que ainda existe um “grande risco de suicídio”. Em 10 de dezembro, o Supremo Tribunal de Londres anula a rejeição da extradição em recurso, considerando que os Estados Unidos tinham fornecido garantias sobre o tratamento que seria prestado ao fundador do WikiLeaks, e a defesa de Assange apresentou recurso.

Em 14 de março de 2022, o Supremo Tribunal Britânico decide não admitir esse recurso. Em 20 de abril, o Tribunal de Magistrados de Westminster, em Londres, emite formalmente uma ordem de extradição. Em 17 de junho, a ministra do Interior britânica, Priti Patel, assinou o decreto de extradição, do qual Assange apelou.

Nos dias 20 e 21 de fevereiro de 2024, ocorreu em Londres o julgamento para examinar o recurso do fundador do WikiLeaks contra sua rendição.

Em 24 de junho de 2024, Assange chegou a um acordo judicial com o sistema de Justiça dos Estados Unidos que lhe permitiu ser libertado.

Assange deixou imediatamente o Reino Unido e deve comparecer perante um tribunal federal nas Ilhas Marianas, um território dos EUA no Pacífico, acusado de “conspiração para obter e divulgar informações relacionadas com a defesa nacional”.

Fonte: O Globo

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