Com cúpula do G20 na Índia, Modi tenta demonstrar que geopolítica vai além de EUA e China

Pedestre aguarda em ponto de ônibus exibindo o retrato do primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, em Nova Délhi
Pedestre aguarda em ponto de ônibus exibindo o retrato do primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, em Nova Délhi — Foto: Sajjad HUSSAIN / AFP

Como um símbolo da intenção da Índia de remodelar a ordem global, a estátua de 19 toneladas que representa o venerado deus hindu Shiva, que cumprimentará os líderes mundiais na cúpula do G20 nesta semana em Nova Délhi, não é difícil de notar. Com 8,5 metros de altura e forjada em ouro, prata e ferro, a figura dançante de Nataraja é um ícone apropriado para o anfitrião da cúpula, Narendra Modi, que comemorou sua ascensão ao poder em 2014 com um serviço de oração no rio Ganges em um templo dedicado a Lord Shiva, o deus da destruição, criação e transformação.

Quase uma década depois, Modi reformulou e dominou o cenário político da Índia — e agora está tentando afirmar a presença do país no cenário mundial. Sua visão tem Nova Délhi como uma terceira via entre Washington e Pequim, independente e livre para buscar seus próprios interesses nacionais em vista de construir sua economia e reivindicar um papel global mais importante.

Autoridades à par do pensamento de Modi retratam a abordagem da Índia como oportunista, buscando maneiras de tirar proveito da intensificação da concorrência entre os EUA e a China e a guerra da Rússia na Ucrânia.

Nova Délhi se recusou a condenar a guerra ou a aderir às sanções internacionais contra Moscou, estocando alegremente petróleo e armas russas, ao mesmo tempo em que fortalece os laços militares com os EUA. A Índia também está com um pé no Quad, o bloco de segurança apoiado por Washington, com o Japão e a Austrália, e outro no Brics, que inclui a China e a Rússia.

O principal diplomata da Índia, o ministro das Relações Exteriores, Subrahmanyam Jaishankar, descreveu certa vez a política externa do país em termos de “uma operação de hedging” — uma estratégia delicada que implica ter várias bolas no ar e, ao mesmo tempo, “demonstrar confiança e destreza para não deixar cair nenhuma”.

— Para os não iniciados ou os anacrônicos, a busca por abordagens e objetivos aparentemente contraditórios podem parecer desconcertante — disse ele em uma palestra de 2019. — Pense nisso não apenas como aritmética, mas como cálculo.

Seja como for, funciona principalmente para o governo de Modi.

A Índia está num ponto ideal geopolítico, com os EUA e seus aliados alardeando a nação como um contrapeso essencial contra a China. Empresas de tecnologia como a Apple estão migrando para o território indiano, à medida que se diversificam em relação à Pequim e apelam a uma crescente classe média na nação mais populosa do mundo. E potências geopolíticas emergentes do chamado Sul Global veem a Índia como um parceiro-chave para garantir mais fundos das nações ricas em questões como as alterações climáticas, evitando ao mesmo tempo uma posição firme em relação à guerra de Vladimir Putin na Ucrânia.

Nos últimos nove meses, Modi convidou investidores russos para participar do setor siderúrgico da Índia, enquanto jantava na Casa Branca e no Palácio do Eliseu, em Paris. O presidente Joe Biden afirmou que a Índia e os EUA estão “entre os parceiros mais próximos do mundo”, enquanto Putin, na semana passada, elogiou uma “parceria estratégica especialmente privilegiada” com a Índia, embora ele não esteja participando da cúpula do G20.

— A Índia tem andado muito bem na corda bamba do multialinhamento — disse Milan Vaishnav, diretor e membro sênior do Programa do Sul da Ásia da Fundação Carnegie para a Paz Internacional. — Sua capacidade de fazer isso é impulsionada por fatores geopolíticos mais amplos, ou seja, uma China em ascensão e uma Rússia em declínio.

Mas autoridades indianas, que pediram para não serem identificadas para discutir deliberações privadas, também reconhecem a precariedade do que eles chamam de “multialinhamento”. Se a Índia representa o novo centro da geopolítica global, manter esse centro já está se mostrando difícil — mesmo antes que uma crise real como um conflito militar em Taiwan torne isso totalmente insustentável.

Esse equilíbrio complexo talvez seja mais evidente na ausência na reunião do G20 do presidente chinês, Xi Jinping, que procurou conquistar o mesmo grupo de economias de mercado emergentes, num esforço para minar a influência dos EUA em todo o mundo.

A escalada das tensões diplomáticas chegou ao ápice no mês passado na cúpula do Brics na África do Sul, com a Índia resistindo aos planos de expandir o grupo para 11 membros por temer que ele se transformasse em um bloco pró-China. No entanto, mais nações acabaram ficando do lado de Xi, forçando Modi a concordar em permitir a entrada de novos membros, incluindo o Irã, que está sujeito a uma série de sanções apoiadas pelos EUA.

— A participação da Índia no Brics pretendia funcionar como um freio aos desígnios da Rússia e da China de convertê-lo numa organização anti-G7, mas Nova Délhi não conseguiu desempenhar esse papel — disse Sushant Singh, pesquisador sênior do Centro de Pesquisa Política, com sede em Nova Délhi, referindo-se ao grupo das sete maiores economias do mundo. — Isso reduzirá o peso da Índia como potência capaz de se opor à China em vários cálculos geopolíticos.

Por enquanto, Modi enfatizará a unidade sob o tema “Vasudhaiva Kutumbakam” ou “Uma Terra, Uma Família, Um Futuro” — um slogan inspirado no sânscrito que, ao lado da estátua de Shiva e da flor de lótus do G20, que é também o símbolo eleitoral de seu Partido Bharatiya Janata (BJP), indicam que cúpula deverá ser cooptada pela agenda nacionalista hindu de seu governo. Ressaltando esse ponto, Modi substituiu a Índia pela antiga palavra sânscrita “Bharat” nos convites para o jantar do evento.

No período que antecedeu a reunião, alguns dos piores episódios de violência religiosa dos últimos anos destacaram acusações de crescentes abusos dos direitos humanos sob Modi, especialmente por parte da maioria hindu e contra minorias religiosas como os muçulmanos. O primeiro-ministro ignorou amplamente as preocupações, dizendo durante a sua visita aos EUA no início deste ano que ficou “realmente surpreendido” ao ouvir o compromisso da Índia com a democracia ser questionado.

Em todo caso, a Índia está hoje muito menos preocupada com as críticas de outros países, tanto quando se trata de conflitos internos como de lidar com questões geopolíticas complicadas que envolvem os EUA, a China, a Rússia e outras potências mundiais

— Somos uma nação de 1,4 bilhão de pessoas e somos a quinta maior economia — disse Jaishankar, ministro dos Negócios Estrangeiros da Índia, à emissora local NDTV na semana passada. — Você se posiciona e diz isso com confiança, as pessoas aceitam. Mas se você não tomar uma posição e hesitar, o mundo irá encurralá-lo.

Fonte: O Globo

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