Com conflitos como as guerras em Gaza e na Ucrânia, Brasil terá de superar polarização geopolítica para obter consensos no G20

Seminário discute desafios do G20 no auditório do jornal O GLOBO
Seminário discute desafios do G20 no auditório do jornal O GLOBO — Foto: Gabriel de Paiva/ Agência O Globo

Num cenário global marcado por conflitos intensos, a tradição diplomática do Brasil de usar seu histórico de boas relações com outros países para buscar consensos será posta à prova na presidência rotativa do G20, grupo das maiores economias do mundo, exercida pelo país pela primeira vez este ano. A tarefa não é nada fácil em meio à crescente polarização em torno de conflitos como as guerras na Ucrânia e em Gaza, que dificultam o diálogo internacional.

O risco de as tensões geopolíticas atuais contaminarem as discussões da agenda prioritária do Brasil à frente do grupo foi um dos principais temas discutidos por autoridades e especialistas no “Kick-off G20 no Brasil”, primeiro encontro com autoridades e especialistas de uma série de debates previstos pelo projeto G20 no Brasil, uma iniciativa dos jornais O GLOBO e Valor e pela rádio CBN.

Os oito participantes dos dois painéis do evento, realizado na semana passada, apontaram este ponto como um dos principais obstáculos das discussões técnicas lideradas pelo Brasil à frente do G20 neste ano. Por outro lado, destacaram a capacidade brasileira de promover pontes entre países, particularmente entre ricos e pobres, para alcançar pontos comuns em um comunicado após a reunião de cúpula dos chefes de Estado do grupo no Rio, em novembro.

Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV, reconheceu a capacidade da diplomacia brasileira de aparar arestas e promover consensos, mas no cenário atual, acredita que “alcançar uma declaração final hoje será muito mais difícil do que há cinco anos”.

— Estamos muito perto de termos o primeiro G20 sem uma declaração final — afirmou Stuenkel. — Não dá para fingir que os conflitos geopolíticos não existem. A invasão da Ucrânia não é singular, mas sim reflexo de um sistema multipolar. Estamos falando de um mundo em que não teremos apenas uma grande guerra, mas várias, localizadas.

Não é a primeira vez que o G20 se vê diante da possibilidade de um impasse para alcançar uma declaração final. Em 2022, na cúpula realizada na Indonésia, os líderes das nações do grupo condenaram a invasão da Ucrânia pela Rússia “nos termos mais fortes” e exigiram a retirada incondicional das tropas russas na declaração final do grupo. No entanto, o comunicado teve de ser creditado à “maioria dos membros”, sinalizando que a Rússia se opôs ao texto.

No ano passado, na reunião realizada na Índia, o grupo conseguiu superar suas diferenças, mas a declaração final foi branda em relação à guerra na Ucrânia, para evitar que Rússia e China vetassem o texto. Já em fevereiro deste ano, uma nota de rodapé sobre a guerra na Ucrânia impediu que ministros do G20 chegassem a um consenso e publicassem um comunicado final no encerramento do encontro econômico do grupo, que aconteceu em São Paulo.

No encontro dos líderes do G20 no Rio, no fim do ano, uma possível declaração final terá de passar ainda pela polarização em torno da guerra entre Israel, que tem nos EUA seu principal aliado, e o grupo terrorista Hamas na Faixa de Gaza.

Marcos Caramuru, ex-embaixador do Brasil na China e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), diagnosticou que o mundo está em um “processo de transição bastante profundo”, com dificuldade de integrar valores distintos:

— Saímos de uma ordem unipolar para uma multipolar com a emergência de diversos países da Ásia.

No encontro, ele também avaliou que dificilmente será possível alcançar acordos estruturais no G20, mas afirmou que a imagem do Brasil “pode sair muito ampliada e dignificada”.

— O mais importante para o Brasil é marcarmos nossa posição, a passagem do G20 para a COP30 e a força que nós temos na transição para a economia de baixo carbono.

Desde que assumiu a presidência do G20, no fim de 2023, o governo brasileiro vem apontando como objetivos prioritários de seu mandato a inclusão social, o desenvolvimento econômico sustentável e a reforma da governança de instituições multilaterais, incluindo as Nações Unidas.

Mauricio Lyrio, secretário de Assuntos Econômicos e Financeiros do Itamaraty e coordenador da trilha de sherpas (negociadores) do G20, admitiu, no evento, que as declarações acordadas entre os chefes de Estado são importantes, mas defendeu que elas “não devem sequestrar as discussões do G20”. Na opinião dele, o grupo está mais interessado na necessidade de “implementar atividades que são fundamentais para a vida das pessoas”, como o combate à fome e às mudanças climáticas, considerados “temas centrais” para o Brasil, segundo o diplomata.

— Decidimos concentrar em temas que tendem a gerar mais consenso que diferenças e conflitos, como a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza — afirmou, em sua participação no primeiro painel via teleconferência.

O sucesso das políticas sociais de combate à pobreza e a posição privilegiada do país na transição energética são alguns dos trunfos que o Brasil tem para avançar nos temas que escolheu como prioritários e que poderão favorecer o diálogo, apontou Lyrio, ressaltando que buscar consenso “não é trivial”.

Luciana Costa, diretora de Infraestrutura, Transição Energética e Mudança Climática do BNDES, também apontou as áreas ambiental e social como as mais promissoras no G20. No debate, ela afirmou que o Brasil está um passo à frente dos demais e vive uma “janela de oportunidade para dar o próximo salto de desenvolvimento sustentável, de geração de riqueza”.

— Quando a gente fala em transição ecológica, transição energética, nenhuma grande potência, nenhum grande país tem as vantagens comparativas combinadas que o Brasil tem — afirmou Luciana, que também apontou a estabilidade da política internacional brasileira, que não tem conflitos com países vizinhos há mais de 150 anos e tem “bom relacionamento com todos os outros países da ONU”, observou.

Ela também destacou a capacidade brasileira de garantir sua própria segurança alimentar e ser um grande fornecedor de alimentos para o resto do mundo, reforçando a ideia de que o Brasil tem o que mostrar nos temas que escolheu promover:

— Somos um país de dimensões continentais tanto do ponto de vista territorial, quanto populacional, somos uma potência de biodiversidade, de recursos naturais.

No segundo painel, Beatriz Mattos, da Plataforma Cipó, foi na mesma linha, mas lembrou que o financiamento sempre foi um ponto sensível das negociações climáticas, e não deve ser diferente na abordagem desse assunto no G20.

— Temos metas cada vez mais ambiciosas, mas não temos meios de implementação — disse, identificando uma lógica “geopolítica perversa” que não alinha interesses e dificulta acordos. — A maior parte das emissões vêm do Norte Global, enquanto os países do Sul Global serão aqueles frontalmente atingidos.

Segundo Henrique Frota, presidente do C20, grupo das organizações sem fins lucrativos, há uma expectativa positiva no terceiro setor global em relação ao G20 no Brasil porque o “espaço público” brasileiro é visto como mais aberto na comparação com outros países”, como a Índia, presidente do G20 no ano passado, e a África do Sul, que estará no comando em 2025. Há liberdade para o contraditório, inclusive em relação às posições do governo brasileiro, e estímulo à participação da sociedade civil e da inciativa privada.

— É um ano de oportunidades, porque no Brasil há menos controle estatal, o espaço público é autônomo e livre — declarou Frota, que também é diretor-executivo do Instituto Pólis e da Abong, associação que reúne as organizações não governamentais do país.

No S20, grupo da comunidade científica, o foco do Brasil é reforçar a divulgação, ou seja, levar o debate sobre ciência ao público em geral, afirmou Helena Nader, principal negociadora brasileira. No entanto, as barreiras criadas em torno da colaboração científica entre países, segundo ela “tão necessária para o avanço das ciências”, especialmente nos países em desenvolvimento, devem permanecer, devido ao que chamou de uma “geopolitização da ciência”.

— Dizer que é importante ter colaboração, todos vão dizer. Se você apresentar um documento sobre compartilhamento de informações (científicas entre os países), todos vão assinar, mas na prática não vai acontecer nada — argumentou Nader, que também é presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC).

Ainda assim, ela ponderou no debate que o Brasil é a maior liderança científica na América Latina e no Caribe e deve fazer uso de sua posição estratégica na presidência rotativa do G20 para reforçar essas demandas.

Já no B20, o grupo de engajamento do setor privado, a presidência rotativa do Brasil é vista como uma oportunidade de acelerar os trabalhos de formulação no fórum e levar aos líderes políticos sugestões do empresariado para políticas públicas e em acelerar os trabalhos no fórum.

— Queremos trabalhar em recomendações mais enxutas, sem diagnóstico. Há excesso de diagnósticos hoje — afirmou Constanza Negri, principal negociadora do Brasil no B20 e gerente de Política Comercial na Confederação Nacional das Indústrias (CNI).

Fonte: O Globo

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