Cem dias do governo Milei: Repressão a protestos marca data na Argentina

Membros de movimentos sociais gritam palavras de ordem durante um protesto contra cortes do governo do presidente Javier Milei nos setores mais vulneráveis
Membros de movimentos sociais gritam palavras de ordem durante um protesto contra cortes do governo do presidente Javier Milei nos setores mais vulneráveis — Foto: Luis ROBAYO / AFP

O governo do ultraliberal Javier Milei completou 100 dias nesta segunda-feira. Desde que tomou posse, em dezembro, o outsider acumulou reveses no Congresso, ligou sua prometida “motosserra” contra os gastos públicos, diminuiu o número de ministérios, e alcançou um superávit financeiro — ordenamento que custou demissões, o aumento dos preços dos alimentos e medicamentos, e um golpe nas tarifas dos serviços públicos devido à remoção dos subsídios. A tensão social aumentou, e a segunda-feira foi marcada por uma onda de protestos pelo país.

Nas ruas, milhares de manifestantes de diferentes organizações sociais exigiram que a entrega de alimentos às cozinhas públicas comunitárias fosse restabelecida. Sob o slogan “A fome é o limite”, o Unión Trabajadores de la Economía Popular (UTEP) convocou os argentinos, pelas redes sociais, para irem às ruas: “Vamos aprofundar nosso plano de luta diante da absoluta falta de resposta do governo à emergência alimentar e ao ajuste da economia popular”.

Em um momento em que a pobreza afeta quase 60% da população, Milei congelou os fundos para os restaurantes e cozinhas comunitária, que fornecem mais de 100 refeições por dia. Algumas cozinhas informaram que receberam o último lote de alimentos em novembro e, desde então, dependem de doações e da ajuda municipal para atender a um número cada vez maior de pessoas.

O objetivo, segundo o governo, é auditar o sistema e prestar assistência direta, evitando a intermediação de organizações sociais, a maioria das quais se opõe ao governo e que são consideradas por ele “gerenciadoras da pobreza”. O Ministério do Capital Humano iniciou uma pesquisa “para a compra transparente de alimentos”, mas os centros comunitários denunciam que as entregas estão suspensas em cerca de 40 mil refeitórios em todo o país.

— A fome nos bairros é terrível. Viemos aqui para protestar porque há quatro meses não são entregues produtos para os refeitórios e as crianças precisam deles — disse María Medina, da organização de esquerda Polo Obrero, à AFP.

Os cortes afetaram também o orçamento das universidades, o apoio estatal ao cinema e à pesquisa em ciência e tecnologia. Os medicamentos, por sua vez, aumentaram 40 pontos percentuais a mais que a inflação geral, e a queda nas vendas revelou mais uma face da crise: o abandono de seus tratamentos crônicos por muitas pessoas.

— Entre comer e comprar o remédio, as pessoas escolhem comer — explicou à AFP a farmacêutica Marcela López, em Buenos Aires.

A pressão popular tem se intensificado e visto a resposta de Milei endurecer cada vez mais. Em um relatório sobre os 100 dias de governo publicado nesta segunda, a Anistia Internacional destacou que a administração do ultraliberal “está acrescentando um novo modelo de liderança de não diálogo e violência permanente”.

Durante as manifestações desta segunda, houve confrontos com as forças de segurança que culminaram com manifestantes, jornalistas e policiais feridos, em Buenos Aires. O líder pró-governo Ramiro Marra publicou um vídeo na rede X (antigo Twitter) mostrando um caminhão hidrante disparando contra os manifestantes e elogiou a polícia por seus esforços para evitar bloqueios de estradas.

Ainda em dezembro, enquanto preparava um pacote de medidas de ajuste fiscal com um impacto sensível no âmbito social, o governo anunciou que iria impedir qualquer tipo de piquete (bloqueio de ruas, pontes e estradas) — e desde então têm cumprido a medida, com alguns protestos sendo reprimidos pela polícia com balas de borracha e gás lacrimogêneo. Em fevereiro, enquanto se debatia a Lei Ônibus, milhares de pessoas protestaram em frente ao Congresso e foram reprimidas pela polícia.

A Lei Ônibus revoga ou modifica mais de 300 normas e junto com o desidratado megadecreto — que inclui a concessão de superpoderes a Milei ou poderes delegados para governar por decreto, entre outros — fazem parte do plano do ultraliberal para desregulamentar a economia. Mas nestes três meses, ambos sofreram reveses no Congresso, onde o partido governista tem apenas 38 das 257 cadeiras. A Lei Ônibus fracassou em fevereiro no debate dos deputados, e o megadecreto foi rejeitado na quinta-feira no Senado.

Essas derrotas mostram que o presidente não conseguiu transmitir a urgência de suas reformas, justificada segundo ele pela herança recebida do governo anterior. Agora, o seu programa está nas mãos dos deputados, que devem revisar uma versão diluída da lei e tomar a decisão final sobre o megadecreto, que permanece em vigor a menos que seja rejeitado também na Câmara Baixa.

Além disso, pouco depois de assumir o cargo, Milei ligou a sua “motosserra”, suspendendo obras públicas, não renovando contratos estatais, reduzindo ministérios pela metade, liberando preços e contratos de aluguel e desvalorizando o peso em mais de 50%, provocando inflação de 25,5% em dezembro, que esfriou em fevereiro para 13%. Com a desvalorização e o aumento de preços de 276% ao ano em fevereiro, o poder de compra dos argentinos foi destruído, principalmente o dos aposentados.

A meta do presidente — atingir o déficit zero este ano — é mais ambiciosa do que o que lhe pede o próprio Fundo Monetário Internacional (FMI), com o qual a Argentina mantém um acordo de crédito de US$ 44 bilhões (cerca de R$ 220 bilhões). Nesses cem dias, Milei reconstruiu as reservas brutas do Banco Central e alcançou um superávit financeiro em fevereiro, segundo anunciado pelo ministro da Economia, Luis Caputo, na sexta-feira. Também foi registrado um superávit em janeiro.

Como parte do ajuste, Milei voa em linhas comerciais com uma comitiva reduzida. Foi assim que chegou em janeiro no Fórum Econômico de Davos, a sua estreia internacional, onde intrigou a elite econômica mundial ao alertar que “o Ocidente está em perigo” e ao criticar a justiça social e o “feminismo radical”.

Apesar dos abraços midiáticos com o ex-presidente dos EUA Donald Trump e com o papa Francisco, com quem se reconciliou durante a canonização da primeira santa argentina, as relações exteriores não têm sido uma prioridade para Milei, exceto quando suspendeu a adesão da Argentina ao bloco dos Brics, em dezembro passado. Outra exceção é sua relação com Israel, para onde o presidente viajou em fevereiro para mostrar a sua proximidade com o país e o seu interesse espiritual pelo judaísmo. Na ocasião, o ultraliberal anunciou seu plano para transferir a embaixada da Argentina — atualmente baseada em Tel Aviv — para Jerusalém. (Com AFP)

Fonte: O Globo

© 2024 Blog do Marcos Dantas. Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução total ou parcial do conteúdo deste site sem prévia autorização.