Nos dias que antecederam as celebrações dos 80 anos do desembarque das tropas aliadas na Normandia, o Dia D, a anfitriã do evento, a França, se viu em meio a uma saia justa diplomática: o presidente Emmanuel Macron havia convidado a Rússia (mas não Vladimir Putin), mas mudou de ideia e retirou o convite após pressão de países como os EUA. Oficialmente, o Palácio do Eliseu citou as “condições desfavoráveis” para a participação russa, fazendo referência à invasão da Ucrânia.
O desconvite não deve ter sido recebido com lamentos. Além das já conhecidas péssimas relações com EUA e Europa desde 2022, Putin comunga de uma longa linha de pensamento russa que vê com ressentimento a importância dada ao Dia D e o papel “secundário” relegado pelo Ocidente à União Soviética (URSS) na Segunda Guerra.
— No Ocidente, gostariam de esquecer as lições da Segunda Guerra Mundial, mas lembramos que o destino da humanidade foi decidido em batalhas grandiosas perto de Moscou e Leningrado (hoje São Petersburgo), Rjev, Stalingrado (hoje Volgogrado), Kursk e Kharkiv, perto de Minsk, Smolensk e Kiev, em pesadas batalhas sangrentas de Murmansk ao Cáucaso e à Crimeia — disse Putin, durante a celebração do Dia da Vitória no front ocidental, em 9 de maio. — Ao mesmo tempo, gostaria de enfatizar: a Rússia nunca menosprezou a importância da segunda frente e da ajuda dos aliados.
De acordo com a Academia Russa de Ciências, em estudo publicado em 1993, 26,6 milhões de soviéticos, em sua maior parte civis, morreram desde o início da Operação Barbarossa, como ficou conhecida a tentativa de Adolf Hitler de dominar a União Soviética, em 1941. Mais do que derrotar o nazifascismo na Europa, a Grande Guerra Patriótica, como é chamada a Segunda Guerra na Rússia e em alguns países da ex-URSS, foi encarada como uma batalha pela sobrevivência, e isso pautou toda a narrativa de propaganda do Kremlin, durante o conflito e pelas décadas que se seguiram.
Citada por Putin, a Batalha de Stalingrado, com mais de 1,2 milhão de mortos, foi um ponto de virada na guerra, interrompendo a expansão alemã em solo russo, ao lado de episódios como a derrota nazista em Lenigrado, após um cerco de 872 dias. Outro episódio crucial, a Operação Bagration (nome em homenagem a um general russo que lutou nas Guerras Napoleônicas), devastou a linha de frente alemã no Leste Europeu em junho de 1944, abrindo caminho para que as tropas soviéticas se aproximassem de Berlim e a conquistassem em maio do ano seguinte. Feitos que, na visão de muitos russos, foram apagados pelo Ocidente.
“Falsas interpretações da História estão sendo introduzidas no sistema educacional ocidental, com mistificações e teorias pseudo-históricas feitas para minimizar os feitos de nossos ancestrais”, escreveu, em 2019, o chanceler russo, Sergei Lavrov, em artigo publicado no site do Ministério das Relações Exteriores. “Os jovens estão ouvindo que o maior crédito pela vitória sobre o nazismo e pela libertação da Europa não é das tropas soviéticas, mas sim do Ocidente, por causa do desembarque da Normandia, que ocorreu pouco mais de um ano antes da derrota dos nazistas.”
Em entrevista ao GLOBO, o professor de História da Universidade de São Paulo (USP) Angelo Segrillo aponta que a pouca importância ao Dia D entre os russos começou a ser difundida no dia seguinte ao desembarque das tropas na costa da França.
Na edição da Pravda — principal jornal da União Soviética e órgão oficial do Comitê Central do Partido Comunistade — de 7 de junho de 1944, o início da Operação Overlord (codinome para a Batalha da Normandia) recebeu um pequeno destaque na capa, além de algumas matérias a partir da terceira página. Um correspondente militar, Mikhail Galaktionov, destacou a grandiosidade do ataque, ressaltando que os alemães perderam boa parte de sua capacidade de defesa “após três anos de guerra na frente Germano-Soviética”.
— Eles não davam grande ênfase, não viam isso [o Dia D], como disse Lavrov em 2019, como algo que tenha mudado o cenário, e isso continuou depois que deixaram de ser aliados [do Ocidente], na Guerra Fria esse sentimento ficou mais forte — disse Segrillo. — E os russos também não viram com bons olhos a atitude do Ocidente de tratar o desembarque na Normandia como se fosse o dia em que tudo foi decidido. Para os russos, a guerra foi decidida na frente oriental, onde ocorreram 80% das perdas alemãs.
Anos antes, diz Segrillo, os soviéticos já cobravam a abertura de uma nova frente de combate no Oeste da Europa, e consideravam que um dos aliados contra os nazistas, o então premier britânico, Winston Churchill, estava deliberadamente atrasando esse esforço de guerra para exaurir as forças alemãs e também as de Moscou.
Um dos momentos de maior animosidade sobre o Dia D ocorreu no aniversário de 40 anos do desembarque, em junho de 1984, quando o presidente francês, François Mitterrand, recebeu a rainha Elizabeth II, o premier canadense, Pierre Trudeau, e o presidente dos EUA, Ronald Reagan, que buscava a reeleição naquele ano.
Os soviéticos enviaram uma delegação, e em paralelo lançaram uma campanha de difamação. O Ministério da Defesa chamou o evento de “propaganda pomposa”, e a agência Tass trouxe depoimentos de veteranos afirmando que a guerra “já estava decidida naquele ponto” — em um artigo até hoje lembrado pelo tom infame, Daniil Kraminov, correspondente de guerra, escreveu na Pravda que os aliados “financiaram” as tropas de Hitler, e que, naquele momento, estavam realizando “preparativos morais” para uma “guerra nuclear” que destruiria a civilização europeia.
— Isso não é um discurso só dos jornais, dos governantes: a sociedade de certa maneira absorveu essas ideias, de criticar a ênfase ao Dia D, como se tudo tivesse sido decidido ali. Isso não é de agora, tampouco do próprio Putin — apontou Segrillo.
Passadas quatro décadas do mal estar causado por Kraminov, a Grande Guerra Patriótica ainda é pilar central da propaganda do Kremlin. Com frequência, Putin exalta o conflito como definidor da alma russa, e traz à audiência sua própria história ligada ao conflito: apesar de nascido em 1952, ele perdeu um irmão durante o cerco a Leningrado, e seu pai combateu nas linhas defensivas contra os alemães.
“As pessoas de minha idade, e eu mesmo, acreditam que é importante que nossos filhos, netos e bisnetos entendam os tormentos e dificuldades que nossos ancestrais enfrentaram”, escreveu Putin em 2020. “Eles precisam entender como nossos ancestrais resistiram e venceram. De onde veio seu poder inabalável, que fascinou o mundo? Claro, estavam defendendo suas casas, filhos, amores e famílias. Mas eles compartilhavam o amor por sua terra, pela Mãe Pátria.”
Putin, como destaca Segrillo, não esperava ser convidado para a Normandia — até pelo risco de ser preso, devido à ordem emitida pelo Tribunal Penal Internacional em 2023. Mas ao reiterar o que vê como inconsistências históricas sobre o papel do Dia D, ele quer consolidar a ideia de que o Ocidente é um inimigo, que tenta reduzir e enfraquecer a Rússia, e de que os russos precisam demonstrar, seja na Ucrânia, seja em guerras futuras, o mesmo poder do Exército Vermelho do passado.
— O revanchismo, a zombaria da História, o desejo de justificar os atuais apoiadores dos nazistas, fazem parte da política geral das elites ocidentais para incitar cada vez mais conflitos regionais, inimizades interétnicas e interreligiosas, e para restringir centros soberanos e independentes de desenvolvimento — disse Putin em 9 de maio. — O Dia da Vitória une todas as gerações. Estamos avançando, confiando nas nossas tradições centenárias, e estamos confiantes de que juntos garantiremos um futuro livre e seguro para a Rússia, para o nosso povo unido.
Fonte: O Globo