Celebrado no Ocidente, Dia D evoca ressentimentos da Rússia sobre história da Segunda Guerra Mundial

Presidente da Rússia, Vladimir Putin, antes de discursar durante parada do Dia da Vitória, na Praça Vermelha
Presidente da Rússia, Vladimir Putin, antes de discursar durante parada do Dia da Vitória, na Praça Vermelha — Foto: Mikhail KLIMENTYEV / POOL / AFP

Nos dias que antecederam as celebrações dos 80 anos do desembarque das tropas aliadas na Normandia, o Dia D, a anfitriã do evento, a França, se viu em meio a uma saia justa diplomática: o presidente Emmanuel Macron havia convidado a Rússia (mas não Vladimir Putin), mas mudou de ideia e retirou o convite após pressão de países como os EUA. Oficialmente, o Palácio do Eliseu citou as “condições desfavoráveis” para a participação russa, fazendo referência à invasão da Ucrânia.

O desconvite não deve ter sido recebido com lamentos. Além das já conhecidas péssimas relações com EUA e Europa desde 2022, Putin comunga de uma longa linha de pensamento russa que vê com ressentimento a importância dada ao Dia D e o papel “secundário” relegado pelo Ocidente à União Soviética (URSS) na Segunda Guerra.

— No Ocidente, gostariam de esquecer as lições da Segunda Guerra Mundial, mas lembramos que o destino da humanidade foi decidido em batalhas grandiosas perto de Moscou e Leningrado (hoje São Petersburgo), Rjev, Stalingrado (hoje Volgogrado), Kursk e Kharkiv, perto de Minsk, Smolensk e Kiev, em pesadas batalhas sangrentas de Murmansk ao Cáucaso e à Crimeia — disse Putin, durante a celebração do Dia da Vitória no front ocidental, em 9 de maio. — Ao mesmo tempo, gostaria de enfatizar: a Rússia nunca menosprezou a importância da segunda frente e da ajuda dos aliados.

De acordo com a Academia Russa de Ciências, em estudo publicado em 1993, 26,6 milhões de soviéticos, em sua maior parte civis, morreram desde o início da Operação Barbarossa, como ficou conhecida a tentativa de Adolf Hitler de dominar a União Soviética, em 1941. Mais do que derrotar o nazifascismo na Europa, a Grande Guerra Patriótica, como é chamada a Segunda Guerra na Rússia e em alguns países da ex-URSS, foi encarada como uma batalha pela sobrevivência, e isso pautou toda a narrativa de propaganda do Kremlin, durante o conflito e pelas décadas que se seguiram.

Citada por Putin, a Batalha de Stalingrado, com mais de 1,2 milhão de mortos, foi um ponto de virada na guerra, interrompendo a expansão alemã em solo russo, ao lado de episódios como a derrota nazista em Lenigrado, após um cerco de 872 dias. Outro episódio crucial, a Operação Bagration (nome em homenagem a um general russo que lutou nas Guerras Napoleônicas), devastou a linha de frente alemã no Leste Europeu em junho de 1944, abrindo caminho para que as tropas soviéticas se aproximassem de Berlim e a conquistassem em maio do ano seguinte. Feitos que, na visão de muitos russos, foram apagados pelo Ocidente.

“Falsas interpretações da História estão sendo introduzidas no sistema educacional ocidental, com mistificações e teorias pseudo-históricas feitas para minimizar os feitos de nossos ancestrais”, escreveu, em 2019, o chanceler russo, Sergei Lavrov, em artigo publicado no site do Ministério das Relações Exteriores. “Os jovens estão ouvindo que o maior crédito pela vitória sobre o nazismo e pela libertação da Europa não é das tropas soviéticas, mas sim do Ocidente, por causa do desembarque da Normandia, que ocorreu pouco mais de um ano antes da derrota dos nazistas.”

Em entrevista ao GLOBO, o professor de História da Universidade de São Paulo (USP) Angelo Segrillo aponta que a pouca importância ao Dia D entre os russos começou a ser difundida no dia seguinte ao desembarque das tropas na costa da França.

Na edição da Pravda — principal jornal da União Soviética e órgão oficial do Comitê Central do Partido Comunistade — de 7 de junho de 1944, o início da Operação Overlord (codinome para a Batalha da Normandia) recebeu um pequeno destaque na capa, além de algumas matérias a partir da terceira página. Um correspondente militar, Mikhail Galaktionov, destacou a grandiosidade do ataque, ressaltando que os alemães perderam boa parte de sua capacidade de defesa “após três anos de guerra na frente Germano-Soviética”.

— Eles não davam grande ênfase, não viam isso [o Dia D], como disse Lavrov em 2019, como algo que tenha mudado o cenário, e isso continuou depois que deixaram de ser aliados [do Ocidente], na Guerra Fria esse sentimento ficou mais forte — disse Segrillo. — E os russos também não viram com bons olhos a atitude do Ocidente de tratar o desembarque na Normandia como se fosse o dia em que tudo foi decidido. Para os russos, a guerra foi decidida na frente oriental, onde ocorreram 80% das perdas alemãs.

Anos antes, diz Segrillo, os soviéticos já cobravam a abertura de uma nova frente de combate no Oeste da Europa, e consideravam que um dos aliados contra os nazistas, o então premier britânico, Winston Churchill, estava deliberadamente atrasando esse esforço de guerra para exaurir as forças alemãs e também as de Moscou.

Um dos momentos de maior animosidade sobre o Dia D ocorreu no aniversário de 40 anos do desembarque, em junho de 1984, quando o presidente francês, François Mitterrand, recebeu a rainha Elizabeth II, o premier canadense, Pierre Trudeau, e o presidente dos EUA, Ronald Reagan, que buscava a reeleição naquele ano.

Os soviéticos enviaram uma delegação, e em paralelo lançaram uma campanha de difamação. O Ministério da Defesa chamou o evento de “propaganda pomposa”, e a agência Tass trouxe depoimentos de veteranos afirmando que a guerra “já estava decidida naquele ponto” — em um artigo até hoje lembrado pelo tom infame, Daniil Kraminov, correspondente de guerra, escreveu na Pravda que os aliados “financiaram” as tropas de Hitler, e que, naquele momento, estavam realizando “preparativos morais” para uma “guerra nuclear” que destruiria a civilização europeia.

— Isso não é um discurso só dos jornais, dos governantes: a sociedade de certa maneira absorveu essas ideias, de criticar a ênfase ao Dia D, como se tudo tivesse sido decidido ali. Isso não é de agora, tampouco do próprio Putin — apontou Segrillo.

Passadas quatro décadas do mal estar causado por Kraminov, a Grande Guerra Patriótica ainda é pilar central da propaganda do Kremlin. Com frequência, Putin exalta o conflito como definidor da alma russa, e traz à audiência sua própria história ligada ao conflito: apesar de nascido em 1952, ele perdeu um irmão durante o cerco a Leningrado, e seu pai combateu nas linhas defensivas contra os alemães.

“As pessoas de minha idade, e eu mesmo, acreditam que é importante que nossos filhos, netos e bisnetos entendam os tormentos e dificuldades que nossos ancestrais enfrentaram”, escreveu Putin em 2020. “Eles precisam entender como nossos ancestrais resistiram e venceram. De onde veio seu poder inabalável, que fascinou o mundo? Claro, estavam defendendo suas casas, filhos, amores e famílias. Mas eles compartilhavam o amor por sua terra, pela Mãe Pátria.”

Putin, como destaca Segrillo, não esperava ser convidado para a Normandia — até pelo risco de ser preso, devido à ordem emitida pelo Tribunal Penal Internacional em 2023. Mas ao reiterar o que vê como inconsistências históricas sobre o papel do Dia D, ele quer consolidar a ideia de que o Ocidente é um inimigo, que tenta reduzir e enfraquecer a Rússia, e de que os russos precisam demonstrar, seja na Ucrânia, seja em guerras futuras, o mesmo poder do Exército Vermelho do passado.

— O revanchismo, a zombaria da História, o desejo de justificar os atuais apoiadores dos nazistas, fazem parte da política geral das elites ocidentais para incitar cada vez mais conflitos regionais, inimizades interétnicas e interreligiosas, e para restringir centros soberanos e independentes de desenvolvimento — disse Putin em 9 de maio. — O Dia da Vitória une todas as gerações. Estamos avançando, confiando nas nossas tradições centenárias, e estamos confiantes de que juntos garantiremos um futuro livre e seguro para a Rússia, para o nosso povo unido.

Fonte: O Globo

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