Caso de brasileira estuprada por sete homens na Índia expõe histórico assustador de violência sexual no país

Mãe de menina de 13 anos que foi estuprada chora durante entrevista em Swang Gulgulia Dhoura, Índia
Mãe de menina de 13 anos que foi estuprada chora durante entrevista em Swang Gulgulia Dhoura, Índia — Foto: Daniel Berehulak/The New York Times

O caso da brasileira naturalizada espanhola que foi estuprada por sete homens em uma região remota do leste da Índia, por onde viajava com o marido, colocou o histórico assustador de violência sexual do país asiático sob os holofotes no fim de semana. O território indiano é considerado há anos um dos mais perigosos do mundo para as mulheres: estimativas oficiais apontam que ao menos três estupros ocorrem a cada hora no país — e um estupro coletivo a cada quatro horas. Meninas e mulheres também correm alto risco de serem escravizadas, segundo pesquisas.

O estupro é um dos crimes mais comuns contra as mulheres na Índia. Em 2022, foram registrados 31.516 casos em todo o país — o equivalente a mais de 86 por dia ou quase um estupro a cada 17 minutos, de acordo com dados do Escritório Nacional de Registros Criminais, que publica o relatório “Crime in India” (Crime na Índia) desde 1953. Deste total, 2.118 casos são de estupro coletivo.

A maior parte das vítimas tem entre 18 e 30 anos (65,9%), mas também há casos de meninas menores de seis anos (0,3%) e de mulheres acima dos 60 anos (0,3%). O Rajastão, na fronteira com o Paquistão, registrou 5.399 casos de estupro no ano passado, o maior número entre os estados. Na capital nacional, Nova Délhi, foram 1.212 casos desse tipo, o mais alto entre os oito territórios da União.

Uma pesquisa da Fundação Thomson Reuters concluiu em 2018 que a Índia era o país mais perigoso do mundo para ser mulher devido ao alto risco de violência sexual contra elas, bem como ao tráfico de pessoas para trabalho doméstico, trabalho forçado, casamento forçado e escravidão sexual, entre outros motivos.

Os resultados foram baseados em uma pesquisa com 550 especialistas em questões femininas em todo o mundo, incluindo acadêmicos, profissionais de saúde, formuladores de políticas e funcionários de ONGs. Os especialistas foram solicitados a considerar parâmetros como violência sexual e não sexual, tráfico humano, tradições culturais, assistência médica e discriminação.

Na edição anterior da pesquisa, realizada em 2011, a Índia aparecia em quarto lugar. Uma nova atualização ainda não foi publicada.

Os números oficiais são alarmantes, mas especialistas alertam que a realidade é ainda pior, com grande número de subnotificações. Muitos ataques não são denunciados, seja por vergonha devido ao estigma, seja pela falta de confiança no trabalho das autoridades, já que condenações raramente acontecem e muitos casos acabam estagnados no saturado sistema judicial do país.

“As vítimas de estupro têm muito medo de se manifestar, pois acreditam que não só não obterão justiça como também temem enfrentar humilhação por toda a vida por parte de suas famílias, comunidades e autoridades policiais”, afirmam os cientistas políticos Rudabeh Shahid, Kaveri Sarkar e Azeem Khan em artigo de janeiro de 2021 publicado pelo Atlantic Council, um centro de estudos baseado em Washington, nos EUA. “Esse estigma baseia-se no sexismo institucional intenso e no patriarcado, em que a concepção de honra está ligada ao corpo da mulher.”

Em 2012, o caso de uma jovem que foi vítima de um estupro coletivo e depois assassinada ganhou as manchetes em todo o mundo. Jyoti Singh, uma estudante de psicoterapia de 23 anos, foi estuprada e abandonada, dada como morta, por cinco homens e um adolescente em um ônibus em Nova Délhi. O crime bárbaro foi seguido por semanas de protestos nas ruas, chamando a atenção da comunidade internacional para os altos níveis de violência sexual na Índia.

A pressão pública foi tão grande que, em 2013, levou a mudanças na antiga definição de estupro no Código Penal, que passou a incluir assédio, perseguição e ataques com ácido, além de estender as sentenças de prisão e introduzir a pena de morte para os condenados por estupro de crianças de até 12 anos de idade. Mas a implementação de medidas contra os agressores tem sido fraca e deixa de fora os casos de estupro marital, segundo os especialistas do Atlantic Council.

“De fato, surgiram movimentos que levaram a reformas”, avaliam. “No entanto, ainda há problemas sérios e as tendências sociais que os alimentam cruzam linhas sociais, econômicas, religiosas, étnicas e políticas.

Ativistas argumentam que as punições com pena de morte em casos recentes de grande repercussão pouco fizeram para alterar as estatísticas de estupro no país. Estudos também mostram que não há correlação entre a introdução da pena capital e a redução das incidências de estupro.

— Temos uma sociedade patriarcal na Índia, que dá mais importância aos homens; as mulheres geralmente são consideradas cidadãs de segunda classe — enfatizou Shruti Kapoor, ativista feminista e fundadora da organização Sayfty Trust, em entrevista à rede alemã Deutsche Welle. — As crianças internalizam isso em uma idade muito jovem; os desejos e as opiniões de uma menina não são considerados tão importantes quanto os de um menino. A criança do sexo feminino aprende a ser subserviente desde o início.

A violência contra as mulheres na Índia também perpassa questões étnicas. Em julho do ano passado, um vídeo mostrando duas mulheres sendo empurradas nuas entre uma multidão de homens no estado de Manipur, no nordeste do país, provocou a indignação de milhões de pessoas, depois de viralizar nas redes sociais e ganhar manchetes do país. Registrada em maio, a cena foi tachada — com dois meses de atraso — pelo primeiro-ministro Narendra Modi de “vergonhosa”.

O episódio ocorreu um dia após o início dos confrontos entre as comunidades meitei e kuki, que já deixaram cerca de 200 pessoas mortas e mais de 70 mil deslocadas. Na ocasião, um grupo de kukis que fugia para a floresta em busca de segurança foi interceptado por uma multidão de meiteis. Dois homens foram mortos e as mulheres do grupo tiveram que desfilar nuas, além de terem sido agredidas sexualmente pela turba.

A divisão de castas, do mesmo modo, se sobrepõe à violência de gênero na Índia. Em 2020, uma jovem dalit de 19 anos foi estuprada por quatro homens brâmanes — a mais alta casta hindu — no distrito de Hathras, no estado de Uttar Pradesh, norte do país. A adolescente chegou a ser internada em um hospital em Nova Délhi, mas morreu em decorrência de seus ferimentos. O caso provocou indignação global depois que as autoridades supostamente cremaram seu corpo à força, sem o consentimento de sua família. Apenas um dos acusados foi condenado pela Justiça indiana, que o julgou por homicídio culposo.

O estupro é um crime inafiançável sob o Código Penal indiano, mas em muitos casos os suspeitos conseguem fiança devido à falta de provas, disse Anuja Trehan Kapur, psicóloga criminal e advogada de Nova Délhi à rede alemã Deutsche Welle.

— Os acusados geralmente são protegidos pela polícia, por políticos ou até mesmo por advogados — acrescentou.

Um total de 445.256 casos de crime contra mulheres foi registrado em 2022 na Índia, de acordo com dados do Escritório Nacional de Registros Criminais. O número representa um aumento de 4% em relação ao ano anterior. A maioria desses crimes foi registrada sob o Código Penal indiano como crueldade por parte do marido ou seus parentes (31,4%), rapto de mulheres (19,2%), agressão a mulheres com intenção de ofender sua dignidade (18,7%) e estupro (7,1%).

Fonte: O Globo

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