Caminho para a garantia dos direitos indígenas

Indígenas em ritual com velas em frente ao STF
Articulista afirma que os que decidem pelos direitos dos indígenas precisam compreender que a vida é mais valiosa do que a economia; na imagem, povos indígenas em ritual com velas em frente ao STF

O que ainda falta para garantir adequadamente os direitos aos indígenas no Brasil? Como devemos celebrar apropriadamente o Dia dos Indígenas em todos os anos?

Para compreender essa questão, conhecer a interrelação entre os tratados internacionais de direitos humanos (normas convencionais) e os direitos fundamentais (normas constitucionais) no Brasil é fundamental.

O decreto 678 de 1992, no qual o Estado brasileiro decidiu pelo acolhimento da Convenção Americana de Direitos Humanos (PDF — 4 MB), o Pacto de São José da Costa Rica, implicando na ampliação do rol dos direitos e garantias fundamentais da Constituição, indica este como um marco normativo regional.

Em dezembro de 1998, o Brasil reconheceu a competência contenciosa da CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos). Dessa forma, obriga o Tribunal regional, pelo decreto 4.463 de 2002, a submeter-se às decisões da Corte, que é o intérprete último da Convenção Interamericana.

Nesse contexto, a maioria da doutrina qualificada em matéria de direitos humanos, como Cançado Trindade e Flávia Piovesan, entendem que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados e em vigor no Brasil têm hierarquia constitucional.

O voto (PDF — 1 MB),  do ministro Sepúlveda Pertence, em 2000, no julgamento do RHC 79.785-RJ, introduziu o tema do caráter supralegal dos referidos tratados, posicionando-os hierarquicamente abaixo da Constituição e acima das demais espécies legislativas.

Já em 2004, na emenda constitucional 45, conhecida como reforma do Judiciário, foi introduzido o parágrafo 3º do artigo 5º na Constituição, que atribui status de emenda constitucional só aos tratados em matéria de direitos humanos aprovados com quórum para aprovação das emendas constitucionais. Resultou em inúmeras críticas, inclusive de inconstitucionalidade do trecho.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 466.343– SP (PDF — 4 MB), em 2008, proferiu uma decisão paradigmática ao atribuir os tratados de direitos humanos a posição hierárquica-normativa de supralegal, aparentemente, uma evolução do entendimento do STF —que considerava tais tratados como de equivalência hierárquica às leis federais.

Mas o caso também revelou ainda uma debilidade frente à tese mais pertinente com a temática dos direitos humanos— a de status igualmente constitucional, podendo, inclusive, serem parâmetros de controle de constitucionalidade.

Outro marco relevante foi em novembro de 2015. Os presidentes e representantes dos tribunais brasileiros, reunidos em Brasília, durante o 9º Encontro Nacional do Poder Judiciário, aprovaram uma diretriz estratégica para orientação da atuação do Judiciário em 2016, com a seguinte redação:

“É diretriz estratégica do Poder Judiciário, e compromisso de todos os tribunais brasileiros, dar concretude aos direitos previstos em tratados, convenções e demais instrumentos internacionais sobre a proteção dos direitos humanos.”.

Finalmente, 30 anos depois da ratificação do Pacto de São José da Costa Rica, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em 2022, dispôs sobre a Recomendação 123, orientando os órgãos do Poder Judiciário à observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos e ao uso da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A proposta é que não só o STF promova a aplicação de tais tratados e dos demais atos normativo-convencionais da Corte Interamericana e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, como opiniões consultivas e decisões. Os tribunais e juízos iniciais também devem ter a mesma responsabilidade.

Assim, a orientação do CNJ expressa uma preocupação com a efetividade dos direitos humanos (e fundamentais) no espectro interno deste Poder, consolidando o uso de um “bloco de convencionalidade” mais amplo, sempre com a perspectiva de maior efetividade das normas e sistemas de direitos humanos.

Diante dessa síntese, pode-se observar uma aparente evolução da interação entre os sistemas normativos internos e internacionais, e até de uma sensibilidade normativa maior por parte do Poder Judiciário nos casos de direitos humanos, de 1992 a 2022.

No entanto, quando se trata de grupos sem representatividade adequada no espaço político brasileiro a aplicação das normas convencionais e da jurisprudência da Corte Interamericana é avocada pelos tribunais brasileiros. Esse é o caso dos povos indígenas, especialmente na demarcação de terras e na proteção dos direitos culturais e identitários das comunidades.

A própria Corte Interamericana publicou, em 2022, a 11ª edição do seu Caderno de Jurisprudência (PDF — 2 MB) com referências a diversas decisões que envolvem direitos indígenas e que poderiam ser tomadas como parâmetros de validade das decisões judiciais, legislativas e administrativas dos poderes públicos do Brasil, no momento em que os indígenas sofrem com a morosidade do governo brasileiro e com a escalada de conflitos por conta dos processos de demarcação das terras.

A título de exemplo de um parâmetro normativo efetivo para aplicação interna na questão da demarcação de territórios indígenas tem o caso “Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicarágua”. O sentenciamento da Corte Regional, dada em 31 de agosto de 2001, dispõe:

Os indígenas, pelo fato de sua própria existência, têm direito a viver livremente em seus próprios territórios; a relação próxima que os indígenas mantêm com a terra deve de ser reconhecida e compreendida como a base fundamental de suas culturas, sua vida espiritual, sua integridade e sua sobrevivência econômica. Para as comunidades indígenas, a relação com a terra não é meramente uma questão de posse e produção, mas um elemento material e espiritual do qual devem gozar plenamente, inclusive para preservar seu legado cultural e transmiti-lo às futuras gerações”.

Além das normas, diretrizes e recomendações, os que decidem pelos direitos dos indígenas precisam compreender que a vida é mais valiosa do que a economia. Como diz Ailton Krenak:

Se os humanos estão em risco, qualquer atividade humana deixa de ter importância. Dizer que a economia é mais importante é como dizer que o navio importa mais que a tripulação. Coisa de quem acha que a vida é baseada em meritocracia e luta por poder”.

Assim, para celebrar apropriadamente o Dia dos Indígenas, os órgãos competentes poderiam, inicialmente, ampliar as ações sobre a concretização dos direitos e garantias fundamentais, amparados pelos direitos humanos que o país já ratificou com o ânimo (princípio) de boa-vontade objetiva e colaboração internacional, unindo o que “a cabeça pensa e o coração deseja” com as obras que dignificam a espécie humana em cada um de seus representantes, sem qualquer discriminação. Uma obra hercúlea, mas que vale a pena viver por ela.

Fonte: Poder360

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