Caixa de horrores de Arthur Lira

Plenário da Câmara dos Deputados presidida por Arthur Lira
Plenário da Câmara dos Deputados presidida por Arthur Lira — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

A sensação que fica é que há, à disposição do presidente da Câmara dos Deputados, uma caixa de horrores, de onde saem assombrações que ele pode usar na medida da sua conveniência. De lá acaba de sair a urgência para votar uma lei medieval, que retrocede onde deveríamos avançar. Um projeto que, se aprovado, ataca a mulher numa sociedade em que as mulheres se sentem acuadas diante dos números alarmantes de estupros e feminicídios. Uma sociedade na qual tantas meninas são proibidas de viver seu tempo de menina.

A forma de agir é a mesma. De surpresa, aparecem projetos que ameaçam direitos, o plenário aprova o regime de urgência e, da noite para o dia, passamos a conviver com mais um fantasma. Os atingidos têm que largar o que estão fazendo para tentar evitar o pior. A agenda do país vai sendo consumida por falsas emergências. Naqueles 24 segundos, parlamentares sentados se tornaram cúmplices. E o país não sabe seus nomes e seus rostos. Cúmplices do que? Primeiro do crime de jogar o país nas trevas, de aceitarem que mulheres sejam a moeda de troca num jogo obscuro de poder e, por fim, de cassarem seus próprios direitos. O debate que a tramitação normal permite morre no regime de urgência, e o parlamento se torna o túmulo de um rito democrático.

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No mesmo dia, outra urgência foi aprovada, a da lei antidelação, com seu enredo emaranhado. É de 2016 e o seu reaparecimento como urgência, oito anos depois, mostra como o campo democrático está se enredando em seus próprios erros. De autoria de um deputado do PT, pode ser usada para beneficiar os que atacaram a democracia. A lei que regulamentou a colaboração premiada é do governo Dilma Rousseff e deu à Polícia Federal e ao Ministério Público uma ferramenta poderosa no combate ao crime. O PT defende seu fim porque acha que foi desvirtuada no combate à corrupção, os bolsonaristas querem o mesmo porque acham que vão livrar golpistas em geral e Bolsonaro em particular da delação do tenente-coronel Mauro Cid.

A proposta surgiu de forma casuística porque o PT achava que estava sendo perseguido pelo próprio instrumento que criou. Os erros da Lava Jato têm que ser separados do combate à corrupção em si, que precisa continuar. Já está pacificado hoje que é preciso provas de corroboração para que a delação seja válida. Ela serve para combater todos os crimes, portanto impedir que um preso colabore com a Justiça favorece todas as organizações criminosas. Há, ainda, a questão da coalizão espúria. Esquerda e direita podem formar coalizões, mas não os democratas com a extrema direita, que tem como objetivo a destruição da democracia.

Outros horrores saíram da caixa durante o atual mandarinato na Câmara dos Deputados através do “regime de urgência”. Para citar um caso, o PL do Veneno estava lá dormindo há 24 anos e foi aprovado em quatro horas. O Marco Temporal foi votado a toque de caixa assim que o STF o considerou inconstitucional. Há projetos que ganham o regime de urgência para ser aprovado algum jabuti nele dependurado. Não percebem esses deputados da calada da noite como rasgam seu próprio mandato ao suprimir o debate.

Da semana passada ficou o horror do PL 1904. Ele torna ainda mais retrógrado um projeto de 1940. O Brasil só admite interrupção da gravidez em três casos — risco para a gestante, feto anencefálico e estupro. A trágica realidade brasileira mostra que as meninas são maioria entre as violentadas, que há barreiras judiciais e burocráticas para se conseguir autorização para interromper a gravidez, e que elas, por serem crianças, têm mais dificuldade em revelar a violência que sofreram.

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A ministra Rosa Weber, antes de se aposentar, propôs ao país avançar em relação à lei de 1940. E agora a Câmara quer urgentemente retroceder. Rosa diz em seu voto que a mulher brasileira é flagelada pela subcidadania ao longo da história. “Transcorridas mais de oito décadas, impõe-se a colocação desse quadro discriminatório na arena democrática para uma deliberação entre iguais, com consideração e respeito. Agora a mulher como sujeito e titular de direito”. E segue a ministra dizendo que está em questão “a dignidade da pessoa humana, a autodeterminação pessoal, a liberdade, a intimidade, os direitos reprodutivos, a igualdade”, caminhos da busca da cidadania plena da mulher. Eu guardo o voto da Rosa na tela do meu computador para reler em dias tristes.

Fonte: O Globo

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