Brasil nega ajuda humanitária para afegãos que fogem do Talibã

Afegãos
Na imagem, uma família afegã em lar temporário em Kariz-e-mir, periferia de Cabul

O governo do Brasil tem negado vistos humanitários para afegãos que tentam fugir do regime fundamentalista do Talibã. A posição do Brasil está em vigor desde a publicação da portaria interministerial 42/2023 entre o Ministério de Justiça e o Ministério das Relações Exteriores, em 22 de setembro de 2023, que suspende o Programa de Visto Humanitário para Afegãos. Leia a íntegra da portaria (PDF – 150kB).

Um comunicado do MRE afirma que a deliberação se manterá “até que uma nova decisão seja tomada pelo governo brasileiro”. Enquanto isso, o Brasil negará vistos humanitários para os afegãos que tentam deixar o país por causa do Talibã.

Em documentos a que o Poder360 teve acesso, um cidadão do Afeganistão diz à embaixada do Brasil em Teerã (Irã) que é perseguido pelo Talibã, grupo que hoje governa o Afeganistão. Afirma que trabalhava como soldado na manutenção de uma base de energia antes da tomada do poder pelos extremistas depois que os Estados Unidos deixaram o país.

Ele afirma que sua mulher foi morta pelo Talibã. Depois disso, ele deixou o Afeganistão em março de 2022 rumo ao Irã com os filhos. O homem, que pede para não ser identificado, teria solicitado o visto humanitário do Brasil, mas, segundo ele, o pedido foi ignorado –diz que a embaixada do Brasil em Teerã pediu para ele aguardar novas informações.

“Atualmente, minha permanência no Irã acabou e posso ser deportado a qualquer momento. Minha vida e as dos meus filhos estão em perigo. Estou pedindo que salvem nossas vidas”, disse o afegão em carta à embaixada brasileira.

Em mensagem direcionadas aos afegãos e exposta em cartazes nos portões da representação brasileira em Teerã, a embaixada do Brasil afirma que os solicitantes de ajuda perturbam a realização dos trabalhos no local. Eis a íntegra do comunicado (PDF – 90 kB, em inglês). 

O recado foi exposto nos portões da embaixada brasileira no Irã por, frequentemente, os cidadãos assediados pelo regime do Talibã optarem por atravessar a fronteira entre o Afeganistão e o Irã em busca da preservação de suas vidas e, também, visando melhores condições socioeconômicas. 

A embaixada do Brasil em Teerã pede aos solicitantes de refúgio que não se direcionem ao local da representação.

“Se os afegãos não respeitarem as nossas regras aqui no Irã, como vocês mostram todos os dias em frente à nossa Embaixada, não há razão para acreditar que no Brasil vocês respeitarão as leis brasileiras. Poderá concordar que esta é razão mais do que suficiente para revogar a nossa política de vistos humanitários para cidadãos afegãos. Só você [afegão] terá que aceitar a culpa por isso”, afirma comunicado brasileiro em Teerã.

No site da representação no Irã, o governo brasileiro também expõe ordens hostis aos afegãos perseguidos pelo governo do Talibã.

“Não venha à embaixada sem ser chamado. Não venha à embaixada para procurar respostas. Não faça ligações para a Embaixada. Não se aproxime ou entre em contato com o pessoal da Embaixada na rua!”, diz a embaixada brasileira em seu site. Leia a íntegra do comunicado (PDF – 442 kB).

O Poder360 entrou em contato com o Itamaraty, que disse estar “empenhado” na produção de regulações que permitam o acolhimento humanitário de afegãos de forma “segura, ordenada e regular”, mas reforçou as orientações citadas acima. 

Doutor em direito internacional, Vladimir Feijó diz que o Brasil, por não assegurar constitucionalmente o refúgio de estrangeiros como um direito absoluto, concede a si requisitos subjetivos para analisar pedidos. Declarou também que, por conta da “estabilização” do governo talibã em território afegão, o Executivo brasileiro tem sua margem para aceitação de novos imigrantes reduzida. 

“A estabilização do governo do Talibã, que começou com a saída dos EUA, teve reconhecimento pelos países vizinhos e recebeu levas muito grandes de investimentos estrangeiros, reduzindo o índice de desemprego no país, tendo crescimento econômico acelerado e, apesar de existir perseguição ideológica e religiosa, o governo brasileiro já não tem tanta margem para alegar crise de instabilidade institucional ou crise econômica”, afirmou.

Feijó também diz que, pelo direito internacional ser de “cumprimento espontâneo” dos Estados, não há jurisdição internacional que possa obrigar o Brasil a rever a portaria interministerial 42 de 2023. Ele também contextualizou que as ondas de “protecionismo diante da migração internacional” na Europa e nos Estados Unidos tornam o Brasil menos propício a sofrer retaliações de demais países. 

“Os ditos países ocidentais, que são os que tipicamente fazem pressão para os países do Sul Global a seguir os tratados internacionais, não estão em clima político para fazer esse tipo de pressão para outros países, porque senão eles poderiam ser acusados ou determinados, uma contra acusação, de eles também terem que acolher [refugiados afegãos], afirmou Feijó. 

O Talibã está no poder no Afeganistão desde 15 de agosto de 2021, quando o grupo ocupou a capital Cabul depois de os soldados norte-americanos deixarem o território. À época, circularam nas redes sociais imagens de aviões militares dos EUA deixando o Afeganistão com pessoas penduradas na parte externa.

Assista ao vídeo (42s):

O grupo mantém uma governança com inúmeras restrições aos direitos humanos, principalmente para mulheres.

Em algumas províncias do país, o direito de locomoção também foi retirado, sendo permitido que saiam de casa somente quando acompanhadas de seus maridos. O direito à educação, tido como direito universal pela Declaração Universal dos Diretos Humanos da ONU, é restrito.  

Em relatório, a ONU classificou a situação das mulheres como uma “perseguição de gênero e um quadro institucionalizado de apartheid de gênero”.

Desde a chegada do grupo ao poder do Afeganistão, vários militares do regime anterior foram perseguidos e mortos. No período de agosto de 2021 a junho de 2023, foram registrados ao menos 144 casos de tortura de cidadãos e 218 casos de mortos sem o julgamento legal, de acordo com relatório da ONU (Organização das Nações Unidas). Eis a íntegra do relatório (PDF – 620kB, em inglês). 

Esta reportagem foi produzida pelo estagiário de jornalismo José Luis Costa sob supervisão do editor-assistente Ighor Nóbrega.

Fonte: Poder360

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