Brasil aposta em aliança contra a fome para obter consensos no G20

Menina e sua sobrinha construindo uma tenda com galhos em Baidoa, na Somália, onde dezenas de milhares de pessoas se deslocaram para fugir da fome e da seca
Menina e sua sobrinha construindo uma tenda com galhos em Baidoa, na Somália, onde dezenas de milhares de pessoas se deslocaram para fugir da fome e da seca — Foto: Andrea Bruce/The New York Times

Antes de o Brasil assumir a presidência do G20, em dezembro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se reuniu com o assessor internacional da Presidência, Celso Amorim, o chanceler Mauro Vieira e o embaixador Mauricio Lyrio, secretário de Assuntos Econômicos e Financeiros do Itamaraty e sherpa (emissário pessoal de um chefe de Estado do grupo) brasileiro, para pedir a elaboração de uma proposta mundial contra a fome. A iniciativa, chamada de Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, é considerada pelo governo o coração da agenda brasileira no G20. O grau de adesão que conseguir, dentro e fora do grupo, determinará, em grande medida, o sucesso da presidência do Brasil, que dura um ano.

Num mundo no qual, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 735 milhões de pessoas passaram fome em 2022 (último relatório) — 122 milhões a mais que em 2019, antes da pandemia da Covid-19 — o Brasil pôs sobre a mesa uma proposta inovadora de combate a um flagelo que assola, sobretudo, países em desenvolvimento.

— Dos 735 milhões que passaram fome [em 2022], 150 milhões são crianças até 5 anos. Existe no mundo quase um Brasil de bebês e crianças passando fome. É brutal — diz Lyrio, que comanda, junto com outros setores do Itamaraty e do Ministério do Desenvolvimento Social, o processo de construção de uma aliança que quer ir bem além do G20.

Esta semana, o sherpa brasileiro foi a Nova York apresentar o projeto na sede da ONU. As regras de adesão serão anunciadas em maio, e em julho, a aliança será oficialmente lançada no Rio.

— A fome é imoral e deve ser prioridade absoluta da comunidade internacional — frisa o embaixador.

A aliança é defendida por Lula em foros internacionais, nos quais tem convidado países de fora do G20 a aderirem à proposta brasileira, que mistura políticas públicas, financiamento, cooperação e renegociação de dívidas. Na visão de Brasília, não basta dar dinheiro aos governos para combater a fome, é necessário, acima de tudo, dar ferramentas que já tenham sido usadas em outros países com bons resultados. Num Brasil que saiu do mapa da fome em 2014 e voltou em 2022, Lula aposta na ação dos Estados, em parceria com outros países e organismos internacionais, para reduzir de forma expressiva a insegurança alimentar no país e no mundo.

— Não se pode transferir renda indefinidamente. Por isso, a aliança terá uma cesta de programas sociais já implementados e considerados eficientes, que os países que aderirem deverão escolher e aplicar, entre eles muitos brasileiros — explica o ministro do Desenvolvimento, Wellington Dias, que dá como exemplo o Bolsa Família, já adotado, segundo ele, por 82 países.

O chamado Pilar Autônomo, central na aliança, refere-se ao compromisso dos países aderentes de escolher programas da cesta de propostas, ainda em criação. A aliança terá, também, um Pilar Financeiro, que estabelecerá mecanismos para dar aos países acesso a recursos de organismos internacionais, doações privadas e de outros Estados. O terceiro Pilar é sobre conhecimento e cooperação. A ideia é que países — sobretudo os não desenvolvidos — com boas experiências em políticas públicas de combate à fome forneçam assistência técnica a outros.

A proposta brasileira prevê a troca de dívida por implementação de programas sociais, com o país devedor assumindo o compromisso de realocar o dinheiro no combate à fome. Os recursos também poderão ser usados em saneamento, infraestrutura e educação, entre outros, disse Dias.

— Os países africanos, juntos, acumulam uma dívida externa de US$ 850 bilhões. Eles entraram numa ciranda e, para combater a fome, é preciso sair dela — aponta o ministro.

A cesta de programas a ser oferecida incluirá iniciativas implementadas em países como China, Índia, Bangladesh e Brasil, entre outros. A China, por exemplo, tirou mais de 800 milhões de pessoas da pobreza desde o fim da década de 1970. O país investiu em infraestrutura rural, subsídios agrícolas, educação e saúde, entre outros. Em Bangladesh, o Banco Grameen é reconhecido por sua inovadora iniciativa de microcrédito, fundamental na luta contra a pobreza. Na Índia, o sistema Aadhar, baseado na identificação biométrica, é exemplo pioneiro no uso de tecnologia para facilitar a inclusão social e financeira da população mais vulnerável, oferecendo um número de identidade único para cada cidadão, permitindo o acesso a serviços governamentais, bancários e de assistência social.

No dia 24 de julho, a iniciativa será lançada numa reunião de chanceleres e ministros da Fazenda e Desenvolvimento Social, com a abertura formal para inscrições de países do G20 e de fora do grupo.

— Hoje há um beco sem saída: os países que mais precisam de recursos são os mais endividados. É uma triste coincidência, que afeta países africanos, latino-americanos e caribenhos — frisa o sherpa brasileiro, que já está conversando com potenciais países doadores, interessados em colaborar com a iniciativa.

Um dos aspectos mais destacados pelos diplomatas brasileiros é a condição de que países beneficiários de recursos — públicos ou privados — se comprometam a aplicar programas incluídos na cesta da aliança. Atualmente, está sendo realizado um estudo para determinar quais são os fundos existentes no mundo para o combate à fome, em paralelo a contatos com eventuais doadores privados. Na visão do ministro do Desenvolvimento brasileiro, o envolvimento do setor privado é crucial.

— Recentemente, 250 dos empresários mais ricos do mundo fizeram um manifestado defendendo serem taxados para contribuir com a redução da desigualdade. É preciso abrir essa agenda — enfatiza Dias.

Recursos da FAO e do Programa Mundial de Alimentos da ONU são dois exemplos de financiamento por organismos internacionais. Há, ainda, fundos do Banco Mundial e do Bando Interamericano de Desenvolvimento (BID) destinados a projetos de infraestrutura ou agricultura, que têm impacto positivo no combate à fome. Com base no estudo em andamento, explica Lyrio, “serão buscadas formas alternativas de financiamento”.

— Trazemos a experiência do Brasil, que superou a fome nos primeiros dois governos de Lula e depois, infelizmente, voltou ao mapa global da fome. É o tema mais consensual da agenda porque, com a atual gravidade da situação, é difícil não querer apoiar uma iniciativa como essa — diz Lyrio.

Fonte: O Globo

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