Black Voters Matter: republicanos investem em eleitorado negro, fundamental para Biden na eleição passada

Um eleitor entra em uma seção eleitoral para votar nas primárias em Atlanta, Geórgia, no dia 12 de março.
Um eleitor entra em uma seção eleitoral para votar nas primárias em Atlanta, Geórgia, no dia 12 de março. — Foto: Elijah Nouvelage / AFP

Garçonete em um diner de Detroit, no Michigan, Cristina Jones, 26 anos, debatia se valia de fato desviar meia hora do caminho de casa após o batente até sua seção eleitoral, nas prévias partidárias do estado, decisivo na disputa pela Casa Branca. Filha e neta de “negros que sempre votaram Democrata”, terminou “estacionada no sofá”.

— De repente, em novembro, voto, mas não garanto. Minha vida era difícil em 2016, quando Donald Trump se elegeu, seguiu assim quatro anos depois, com Joe Biden, e não vejo céu azul como o de ontem se repetindo no fim do ano — disse ela, no começo de uma tarde de inverno atipicamente quente no Meio-Oeste americano.

A história de um voto a menos para a reeleição de Biden em uma cidade com 78% da população negra é menos aleatória do que parece. Ela se junta a narrativas e interpretações de pesquisas dos dois lados que buscam decifrar o voto dos afro-americanos, pouco mais de oito meses das eleições. Universo estimado pelo Pew Research Center em 34,4 milhões de eleitores, ou 14% do total no país, que tem maior peso justamente em alguns dos estados cruciais para se alcançar a maioria no Colégio Eleitoral, entre eles Geórgia (33% do total), Carolina do Norte (23%) e o próprio Michigan (14%).

— Biden terá de novo a maioria dos votos dos negros. Mas discute-se agora se essa vantagem se reduzirá, se o número dos que ficarão em casa aumentará, e o apelo que terão candidatos independentes, como (o filósofo negro) Cornel West. Fatores que podem decidir quem comandará os EUA a partir de janeiro— disse Cliff Albright, fundador, em 2016, do Black Voters Matter (BVM, sigla em em inglês para “eleitores negros importam”).

A ONG dirigida por Albright, referência em denúncia da supressão do voto de minorias e no registro de eleitores afro-americanos, provou sua afirmação na prática há quatro anos. A atuação do grupo foi fundamental para a presença recorde de negros nas seções eleitorais da Geórgia, onde Biden venceu por 11.479 votos, com 5 milhões de eleitores em jogo; do Michigan, onde abriu 154.188 votos sobre Trump, entre 5,5 milhões; e da Pensilvânia, com 80.555 a mais em 7 milhões.

O combustível para a mobilização foi a denúncia da violência policial contra as pessoas negras, após os assassinatos de, entre muitos outros, George Floyd, Trayvon Martin e Breonna Taylor. Sem o alto comparecimento dos afro-americanos — e 92% deles, segundo o Pew Research, votaram em Biden —, os democratas não teriam os 52 votos que lhes garantiram a vitória no Colégio Eleitoral (o resultado final foi 306 a 232). Daí a investida republicana.

Em 2016, quando menos eleitores do estrato (59%, contra os 63% de 2020) se animaram a votar, a ex-secretária de Estado Hillary Clinton, mesmo com 88% de apoio dos negros, perdeu nos três estados para Trump.

Os republicanos leem os mesmos números de outra forma. A campanha tem enfatizado que Trump aumentou em um terço seus votos no grupo em 2020, passando de 6% para 8% do total, com avanço concentrado nos homens jovens sem curso superior. Em janeiro, o mesmo Pew Research mostrou divisão quase exata na aprovação da Casa Branca por eleitores negros: 49% torciam o nariz e 48% aprovavam o desempenho de Joe Biden.

No começo da semana, o jornalista de dados John Burn-Murdoch, do Financial Times, viralizou um texto na rede social X. Quase sete milhões de internautas já acompanharam sua interpretação para pesquisas centradas no tema. Ele conclui que a política americana vive um “realinhamento racial”, uma “tendência social importante e ainda pouco compreendida”. Uma das razões seria a de os jovens negros não terem “memória vívida da luta pelos direitos civis e suas conquistas”, desde os anos 1960, no governo Lyndon Johnson, democrata.

Trump tem repetido que “democratas tratam o voto dos negros como se eles fossem garantidos”.

Referência em estatística eleitoral, Nate Silver escreveu anteontem que a análise de Burn-Murdoch sugere de fato uma “hemorragia” no apoio dos afro-americanos aos democratas. Mas também pondera que a fonte central do jornalista em 2024, uma pesquisa New York Times/Universidade Siena que mostra apoio de “apenas” 55% dos eleitores negros a Biden, não ouviu gente o suficiente (980 pessoas) para conclusões lapidares.

No QG de Trump, a discussão aumentou o ímpeto do grupo sulista que defende a escolha de um companheiro de chapa negro, como o senador Tim Scott, da Carolina do Sul, em contraponto à vice-presidente Kamala Harris. E o ex-presidente fez barulho ao afirmar, em uma associação conservadora de afro-americanos no estado de Soctt, que estes o entendem bem, “pois, como eu, sofrem perseguição da Justiça”.

— O tiro saiu pela culatra, realçou o privilégio branco dele: negros e negras sabemos que, se fôssemos nós com dezenas de processos na costas, estaríamos presos ou mortos, não em campanha pela Casa Branca — disse Albright, da BVM.

Ele reconhece a “falta de animação com a reeleição” de Biden entre negros. E que os jovens não sentiram a recuperação da economia, com o preço dos aluguéis os lembrando todo mês das sequelas da inflação alta:

— Mas ligamos, batemos em portas, nas redes sociais, e esses fatores não levaram a uma migração para Trump.

Só se saberá o resultado real da investida republicana no voto negro, estrato central da coalizão democrata, em novembro, mas o avanço já pauta a estratégia de grupos que trabalham em sintonia com a Casa Branca no alistamento de eleitores, como o Swing Left, com mais de um milhão de militantes.

— A matemática na Pensilvânia, por exemplo, inclui contrabalançar eventual aumento de abstenção do voto negro em Filadélfia com aumento proporcional nos subúrbios de eleitores motivados pela defesa do direito ao aborto — contou Mete Egeman, coordenador regional.

Em Detroit, o reverendo Robert Smith Jr. relembrou, antes de votar em Biden, os encontros com fiéis que agendou na Igreja Batista New Bethel este ano: quatro. Virão mais:

— Neles, nos energizamos ao revisitar as mensagens supremacistas e o culto à ganância. Votaremos sim em peso mais uma vez, e contra Trump.

*Enviado especial

Fonte: O Globo

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