Garçonete em um diner de Detroit, no Michigan, Cristina Jones, 26 anos, debatia se valia de fato desviar meia hora do caminho de casa após o batente até sua seção eleitoral, nas prévias partidárias do estado, decisivo na disputa pela Casa Branca. Filha e neta de “negros que sempre votaram Democrata”, terminou “estacionada no sofá”.
— De repente, em novembro, voto, mas não garanto. Minha vida era difícil em 2016, quando Donald Trump se elegeu, seguiu assim quatro anos depois, com Joe Biden, e não vejo céu azul como o de ontem se repetindo no fim do ano — disse ela, no começo de uma tarde de inverno atipicamente quente no Meio-Oeste americano.
A história de um voto a menos para a reeleição de Biden em uma cidade com 78% da população negra é menos aleatória do que parece. Ela se junta a narrativas e interpretações de pesquisas dos dois lados que buscam decifrar o voto dos afro-americanos, pouco mais de oito meses das eleições. Universo estimado pelo Pew Research Center em 34,4 milhões de eleitores, ou 14% do total no país, que tem maior peso justamente em alguns dos estados cruciais para se alcançar a maioria no Colégio Eleitoral, entre eles Geórgia (33% do total), Carolina do Norte (23%) e o próprio Michigan (14%).
— Biden terá de novo a maioria dos votos dos negros. Mas discute-se agora se essa vantagem se reduzirá, se o número dos que ficarão em casa aumentará, e o apelo que terão candidatos independentes, como (o filósofo negro) Cornel West. Fatores que podem decidir quem comandará os EUA a partir de janeiro— disse Cliff Albright, fundador, em 2016, do Black Voters Matter (BVM, sigla em em inglês para “eleitores negros importam”).
A ONG dirigida por Albright, referência em denúncia da supressão do voto de minorias e no registro de eleitores afro-americanos, provou sua afirmação na prática há quatro anos. A atuação do grupo foi fundamental para a presença recorde de negros nas seções eleitorais da Geórgia, onde Biden venceu por 11.479 votos, com 5 milhões de eleitores em jogo; do Michigan, onde abriu 154.188 votos sobre Trump, entre 5,5 milhões; e da Pensilvânia, com 80.555 a mais em 7 milhões.
O combustível para a mobilização foi a denúncia da violência policial contra as pessoas negras, após os assassinatos de, entre muitos outros, George Floyd, Trayvon Martin e Breonna Taylor. Sem o alto comparecimento dos afro-americanos — e 92% deles, segundo o Pew Research, votaram em Biden —, os democratas não teriam os 52 votos que lhes garantiram a vitória no Colégio Eleitoral (o resultado final foi 306 a 232). Daí a investida republicana.
Em 2016, quando menos eleitores do estrato (59%, contra os 63% de 2020) se animaram a votar, a ex-secretária de Estado Hillary Clinton, mesmo com 88% de apoio dos negros, perdeu nos três estados para Trump.
Os republicanos leem os mesmos números de outra forma. A campanha tem enfatizado que Trump aumentou em um terço seus votos no grupo em 2020, passando de 6% para 8% do total, com avanço concentrado nos homens jovens sem curso superior. Em janeiro, o mesmo Pew Research mostrou divisão quase exata na aprovação da Casa Branca por eleitores negros: 49% torciam o nariz e 48% aprovavam o desempenho de Joe Biden.
No começo da semana, o jornalista de dados John Burn-Murdoch, do Financial Times, viralizou um texto na rede social X. Quase sete milhões de internautas já acompanharam sua interpretação para pesquisas centradas no tema. Ele conclui que a política americana vive um “realinhamento racial”, uma “tendência social importante e ainda pouco compreendida”. Uma das razões seria a de os jovens negros não terem “memória vívida da luta pelos direitos civis e suas conquistas”, desde os anos 1960, no governo Lyndon Johnson, democrata.
Trump tem repetido que “democratas tratam o voto dos negros como se eles fossem garantidos”.
Referência em estatística eleitoral, Nate Silver escreveu anteontem que a análise de Burn-Murdoch sugere de fato uma “hemorragia” no apoio dos afro-americanos aos democratas. Mas também pondera que a fonte central do jornalista em 2024, uma pesquisa New York Times/Universidade Siena que mostra apoio de “apenas” 55% dos eleitores negros a Biden, não ouviu gente o suficiente (980 pessoas) para conclusões lapidares.
No QG de Trump, a discussão aumentou o ímpeto do grupo sulista que defende a escolha de um companheiro de chapa negro, como o senador Tim Scott, da Carolina do Sul, em contraponto à vice-presidente Kamala Harris. E o ex-presidente fez barulho ao afirmar, em uma associação conservadora de afro-americanos no estado de Soctt, que estes o entendem bem, “pois, como eu, sofrem perseguição da Justiça”.
— O tiro saiu pela culatra, realçou o privilégio branco dele: negros e negras sabemos que, se fôssemos nós com dezenas de processos na costas, estaríamos presos ou mortos, não em campanha pela Casa Branca — disse Albright, da BVM.
Ele reconhece a “falta de animação com a reeleição” de Biden entre negros. E que os jovens não sentiram a recuperação da economia, com o preço dos aluguéis os lembrando todo mês das sequelas da inflação alta:
— Mas ligamos, batemos em portas, nas redes sociais, e esses fatores não levaram a uma migração para Trump.
Só se saberá o resultado real da investida republicana no voto negro, estrato central da coalizão democrata, em novembro, mas o avanço já pauta a estratégia de grupos que trabalham em sintonia com a Casa Branca no alistamento de eleitores, como o Swing Left, com mais de um milhão de militantes.
— A matemática na Pensilvânia, por exemplo, inclui contrabalançar eventual aumento de abstenção do voto negro em Filadélfia com aumento proporcional nos subúrbios de eleitores motivados pela defesa do direito ao aborto — contou Mete Egeman, coordenador regional.
Em Detroit, o reverendo Robert Smith Jr. relembrou, antes de votar em Biden, os encontros com fiéis que agendou na Igreja Batista New Bethel este ano: quatro. Virão mais:
— Neles, nos energizamos ao revisitar as mensagens supremacistas e o culto à ganância. Votaremos sim em peso mais uma vez, e contra Trump.
*Enviado especial
Fonte: O Globo