‘Big Brother do assalto’: câmeras privadas em postes nas ruas de SP e RJ reduzem a violência?

Luciano Caruso diz que teve ideia de fundar CoSecurity após ter bicicleta recuperada após acionar câmera quando estava nos Estados Unidos -  (crédito: Divulgação)
Luciano Caruso diz que teve ideia de fundar CoSecurity após ter bicicleta recuperada após acionar câmera quando estava nos Estados Unidos - (crédito: Divulgação)

Um poste iluminado com luzes de LED e duas ou três câmeras, na parte superior, apontadas para a rua.

Instalados no recuo da calçada ou nas paredes, eles se multiplicam em bairros considerados nobres de São Paulo, como Brooklin, Moema, Itaim Bibi e Mooca, além do Leblon e Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.

A popularização das câmeras de segurança dentro de comércios e casas cresceu de maneira exponencial nas últimas décadas, mas, agora, empresas privadas estão levando esse monitoramento para as ruas.

Só em São Paulo, já foram instaladas ao menos 15 mil dessas câmeras particulares para vigiar as ruas, segundo um levantamento da BBC News Brasil junto às cinco das maiores empresas que atuam neste mercado.

Isso é mais, por exemplo, do que a Prefeitura de São Paulo afirma ter instalado nas ruas da cidade: 12,9 mil câmeras.

Um verdadeiro Big Brother urbano.

Mas todo esse aparato aumenta realmente a segurança dessas regiões, como dizem as empresas ao vender esse tipo de serviço?

Elas podem gravar e armazenar as imagens das ruas? O que diz a polícia?

Embora esse novo tipo de câmera seja oferecido aos condomínios e estabelecimentos como uma forma de reduzir a violência, não há dados que atestem se são eficazes ou não.

As empresas afirmam que crimes já foram resolvidos a partir das filmagens e que sua presença nas ruas ajuda a inibir crimes. Por sua vez, há clientes que afirmam que elas aumentam a sensação de segurança.

Segundo estas empresas, a ideia é criar uma rede de câmeras capazes de monitorar ações criminosas e auxiliar o poder público nas investigações.

Mas especialistas alertam que, para isso, seria necessário ter um aparato de investigação mais robusto e integrado com o serviço privado.

Existem hoje em torno de 60 empresas que oferecem essas novas câmeras particulares instaladas em postes ou na fachada de edifícios e residências, segundo um levantamento de uma destas companhias, a Gabriel.

As empresas cobram mensalidades pelo serviço que variam de R$ 389 a R$ 799, dependendo do produto instalado, que varia em quantidade de câmeras e tipo de equipamento (poste ou diretamente no muro).

As empresas calculam que haja cerca de 5 mil pontos de monitoramento na capital paulista, que podem ter até três câmeras em cada um deles, segundo estimativas dessas empresas.

No Rio de Janeiro, a Gabriel estima que tenha ao menos 5 mil câmeras instaladas. As outras empresas não forneceram dados a respeito.

Procurada, a Secretaria de Urbanismo e Licenciamento de São Paulo informou que esses postes são considerados parte do mobiliário urbano pela Lei Cidade Limpa, que estabelece as normas sobre o que pode ser instalado nos espaços públicos.

A secretaria disse que estes só podem ser instalados em locais como calçadas e praças se tiverem aprovação do poder público.

No entanto, não há necessidade de autorização quando ficam em áreas particulares, como recuos de prédios, muros ou portões.

As empresas dizem que sempre adotam a segunda opção. E, quando não há espaço para recuo, o equipamento é instalado na própria fachada do imóvel.

Em entrevista à BBC News Brasil, os fundadores da Gabriel e da Cosecurity, duas das empresas com mais câmeras instaladas, disseram que, diferentemente das câmeras tradicionais já instaladas em comércios e residências do país, a intenção é formar uma rede.

Espalhadas pelas ruas, elas poderiam, em tese, filmar o passo a passo de possíveis crimes e auxiliar na investigação e combate a crimes.

Uma vez em posse das imagens, as autoridades tomariam as providências necessárias.

A BBC News Brasil apurou que outras três empresas — White, RS e Delta 96 — também buscam usar as câmeras para formar uma rede de monitoramento.

Otávio Miranda, fundador da Gabriel, diz que a intenção não é apenas filmar a porta de sua casa ou comércio, mas também de toda a comunidade ao redor.

“Nossa proposta é que a gente possa dar apoio e suporte a uma pessoa onde ela esteja. Esse é o princípio da rede. As pessoas estão pagando por elas e pelo monitoramento do local onde elas vivem”, diz Miranda.

Para isso, as empresas dizem que buscam instalar o maior número de câmeras possível.

A multiplicação desses postes de câmeras nas duas maiores cidades do país se dá por um motivo simples, diz Miranda.

“As pessoas querem se sentir seguras”, resume o fundador da Gabriel.

As empresas argumentam que o serviço já ajudou a solucionar casos de roubo, agressão e até mesmo perda de cachorro a partir das imagens registradas e armazenadas.

Algumas afirmam que também acionam a polícia em tempo real caso um crime em andamento seja detectado.

A Gabriel cita, por exemplo, ter inocentado oito pessoas e ter ajudado a prender 332 suspeitos.

Outro argumento é que a presença das câmeras, demarcada pela iluminação em LED colorido, inibiria novos crimes de serem cometidos em áreas onde essas câmeras fossem instaladas.

Mas os porta-vozes das companhias e autoridades ouvidos pela reportagem, no entanto, não apresentaram dados que demonstrem a redução da criminalidade.

A CoSecurity, por exemplo, anuncia seu produto em condomínios afirmando que oferece uma “ação reativa e imediata”.

Em uma proposta enviada a um condomínio da Zona Oeste de São Paulo, a empresa diz que a instalação dos postes de segurança “tem se comprovado um importante recurso no combate ao crime”.

Afirma ainda que, em caso de ocorrência, “podemos buscar ativamente o deslocamento dos marginais e evitar novo caso ou até ajudar a polícia na captura”.

Mas, questionado pela BBC News Brasil se há dados que apontem a redução da criminalidade como resultado desse tipo de serviço, o fundador da empresa, Luciano Caruso, diz que isso “é um pouco complicado”.

“Você pode até ter uma percepção de que aumentou (a criminalidade) porque antes não tinha registro dos dados e, com as câmeras, os casos passaram a ser denunciados porque as pessoas têm as imagens, o que reduz a subnotificação”, afirma.

Procurada pela BBC News Brasil, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP) não informou se os índices caíram nas regiões onde há maior concentração dessas câmeras e também não disse se usam essas imagens para ajudar nas investigações.

A pasta do governo paulista também não respondeu se essas imagens são integradas ao sistema de monitoramento da Polícia Militar ou se elas são usadas em investigações da Polícia Civil.

O governo paulista ainda foi questionado sobre quantas câmeras são monitoradas pela Polícia Militar, mas isso também não foi informado.

A SSP se resumiu a dizer que “está empenhada em combater a criminalidade” e que, como resultado de seus esforços, “os roubos em geral apresentaram queda de 11,8% e os furtos, de 0,5%”.

A comparação foi feita entre o primeiro bimestre deste ano e o mesmo período de 2023. A pasta disse ainda que 6.384 suspeitos foram presos ou apreendidos – 3,1% a mais do que nos mesmos meses de 2023 e 447 – armas de fogo apreendidas.

No Rio de Janeiro, onde a Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp) diz ter um sistema integrado entre as forças de segurança e 18 instituições públicas e privadas, com 260 mil dispositivos (entre câmeras e alarmes), a pasta afirmou que esse projeto começou em julho de 2023 “e ainda não produziu relatórios sobre a redução criminal”.

A secretaria afirmou que será feita uma análise após seu primeiro ano de funcionamento.

Dois síndicos profissionais ouvidos pela BBC News Brasil sob a condição de anonimato dizem que não perceberam uma redução do número de assaltos na região dos condomínios que administram em São Paulo.

Mas eles dizem que aumentou a curiosidade dos moradores a respeito dos equipamentos e pedidos dos moradores para ter acesso às imagens.

“Bandido nunca teve medo de câmera, senão já teriam acabado os roubos a comércios e casas, né?”, disse um deles.

“Se eles veem o morador esperando carro de aplicativo com celular na mão ou mulher com bolsa chegando sozinha aqui (no prédio), eles chegam e roubam mesmo.”

Outro síndico ouvido pela reportagem afirmou que não houve nenhuma resistência dos condôminos à proposta de instalar o equipamento no prédio, com uma mensalidade de R$ 700.

“Isso tem um custo de R$ 4 para o morador por mês, então, ele avalia que vale a pena”, disse.

Apesar de não ter percebido uma redução na criminalidade, ele afirmou acreditar no potencial do equipamento de evitar esse tipo de ação.

“Acho que inibe [crimes]. Se eu sou bandido e vejo um poste iluminado com o nome de uma empresa de segurança, escolheria um local onde não tenha isso para cometer um crime.”

O analista criminal Guaracy Mingardi, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma ser positiva a instalação de uma rede de câmeras de monitoramento, porque podem ajudar na investigação.

Mas ele ressalta ser necessária uma equipe preparada para apurar os casos identificados a partir das câmeras.

“As imagens das câmeras são provas para prender criminosos. O governo tem que abrir concursos para encher a polícia de investigadores, pois são eles que vão fazer esse trabalho de identificar o bandido”, diz Mingardi.

“Tem que começar a investir nisso agora para colher resultados a médio prazo.”

Segundo ele, que já foi secretário de Segurança de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, os policiais precisam de treinamento e experiência em campo antes de se tornarem investigadores capacitados para analisar os dados das câmeras.

Ele diz, no entanto, que muitos governos não priorizam investir em investigação porque não é politicamente vantajoso.

“Sucessivos governos não colocam dinheiro na investigação”, afirma.

“Ter viatura na rua dá voto, porque dá a impressão de que a coisa está funcionando. A patrulha prende algumas pessoas, mas o crime profissional se resolve com investigação.”

O especialista em câmeras de segurança Pablo Nunes afirma que o surgimento dessas empresas privadas especializadas em monitoramento de vias públicas ocorre por conta do medo da violência.

Pesquisas apontam que essa é hoje uma das principais preocupações dos brasileiros.

“Esse campo se dá por duas óticas. A primeira é a sensação de impunidade e falta de responsabilidade do Estado frente aos problemas dos cidadãos. É um Estado que não se faz eficiente diante desses problemas”, afirma Nunes, que coordena coordenador-adjunto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).

“O segundo é esse medo da criminalidade que é potencializado por determinados noticiários na imprensa, redes sociais e veículos de comunicação de bairros, que servem de mecanismo para aumentar essa sensação de insegurança.”

Nunes afirma que a multiplicação das câmeras estimula parte da população a atuar como uma espécie de vigilante, porque as câmeras de algumas empresas podem ser acessadas pelos moradores.

Com as imagens em mãos, elas são publicadas em grupos de aplicativos de mensagens, muitas vezes sem o contexto correto e sem saber se a pessoa que aparece nas imagens é uma criminosa, afirma o especialista.

O pesquisador afirma que algumas empresas de segurança até mesmo divulgam imagens de possíveis criminosos como uma forma de comemorar prisões.

“A gente vê muitos casos de abuso quando se trata de redes sociais.”

Mas o que diz a lei a respeito das gravações feitas por meio destas câmeras? É permitido filmar as pessoas na rua? E qual o limite para o uso destas imagens?

Luiz Augusto D’Urso, professor de direito digital no MBA da Fundação Getúlio Vargas, diz que filmar as ruas não é proibido, pois o espaço é público e pode ser monitorado para fins de segurança.

Isso é estabelecido pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que controla o uso de dados e imagens das pessoas.

“Desde que não tenha outros fins, essa finalidade é permitida pela LGPD. A imagem é privada e a empresa vai tratar como único fim com a questão da segurança e apoio à autoridade policial”, diz o advogado.

Essa é uma situação semelhante à que ocorre, por exemplo, com um fotojornalista, que pode registrar tudo o que ocorre em ambientes públicos sem precisar de autorização.

Mas o advogado explica que as imagens armazenadas não podem ser divulgadas em grupos de mensagens, redes sociais e outras plataformas digitais.

Para o advogado, isso só seria um problema caso as imagens fossem usadas de maneira ilegal, como a publicação de edições desses vídeos em redes sociais.

“Eu concordo com essa interpretação, mesmo ela não sendo explícita na lei. O uso para fins de segurança é permitido, até porque as empresas já estão funcionando neste sentido”, afirma D’Urso.

Especialistas em segurança ouvidos pela reportagem disseram que outros países também contam com esse tipo de monitoramento de câmeras feito por empresas privadas.

Entre eles, estão Reino Unido, Alemanha, Estados Unidos, Canadá e África do Sul.

Alguns países têm, inclusive, uma parceria com a polícia, como é o caso de alguns Estados americanos. No Reino Unido, há uma série de regras a serem seguidas por pessoas e empresas que desejam instalar câmeras voltadas para as vias publicas.

Entre as regras estão a de deixar claro que há uma câmera filmando o ambiente, avisar a vizinhança de que ela está sendo instalada, mas principalmente em relação às informações coletadas. O dono da câmera deve usar as imagens apenas para proteger a sua propriedade.

Luciano Caruso, cofundador da CoSecurity, conta à reportagem que a ideia de criar a empresa aconteceu justamente a partir da própria experiência dele após ter sua bicicleta roubada quando estava nos Estados Unidos.

Ele disse que viu um totem de segurança próximo ao local de onde o crime ocorreu e fez o procedimento para pedir ajuda.

“Lá é um pouco mais avançado do que nós na parceria entre o público e o privado. Funcionou bem integrado e uma viatura foi acionada para me atender.”

Ele conta que, depois de três meses no Brasil, ele recebeu uma ligação dizendo que acharam a bicicleta.

“Achei a experiência muito interessante. Se eu tivesse que recorrer às câmeras do prédio da faculdade, tenho certeza de que seria mais difícil conseguir”, diz

“Fora o trabalho que uma pessoa tem para procurar as imagens de uma data específica e depois colocar tudo num pendrive.”

Especialistas apontam que seria problemático se as câmeras usassem a tecnologia de reconhecimento facial, porque ela têm um alto índice de erros e podem levar a prisões indevidas.

As empresas ouvidas pela reportagem afirmam, no entanto, que não empregam esse recurso nem têm interesse em fazer isso.

Segundo as empresas, a única tecnologia de inteligência usada pelas empresas é a de leitura de placas de veículos. Isso é possível porque elas seguem um padrão de formato, tamanho e cores.

Caso um veículo que tenha sido roubado ou furtado passe em frente a uma dessas câmeras, as empresas dizem ser capazes de identificá-lo e emitir um alerta para as autoridades.

Mas a tecnologia está sendo aplicada a câmeras de segurança públicas, por exemplo.

A Sesp-RJ informou ter instalado mais de 120 câmeras com reconhecimento facial em todo o Estado.

Esses equipamentos, segundo a pasta, “possibilitaram a prisão de 190 pessoas com mandado de prisão em aberto, entre o final de dezembro de 2023 e o dia 10 de junho de 2024”.

Ao mesmo tempo, em janeiro deste ano, uma mulher foi detida por engano no Rio após ser identificada como foragida por roubo e formação de quadrilha.

Caso semelhante ocorreu também este ano quando um homem de 60 anos foi preso erroneamente durante o Carnaval em Salvador.

Os Estados Unidos, inclusive, estão em forte embate para vetar o uso de câmeras de segurança de fabricação chinesa para fazer reconhecimento facial.

A comissão federal de comunicações americana recomendou que as escolas do país trocassem seus equipamentos importados da China por não serem “confiáveis”.

Fonte: Correio Braziliense

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