Atualmente, 33 milhões de pessoas passam fome no país, segundo resultado de uma nova pesquisa sobre o tema divulgada nesta quarta (8). Em 1993, eram 32 milhões de pessoas nessa situação, segundo dados semelhantes do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) —a população brasileira então era 35% menor que a de hoje.
A pesquisa mostrou que 6 a cada 10 brasileiros convivem com algum grau de insegurança alimentar. São 125,2 milhões de pessoas nesta situação, o que representa um aumento de 7,2% desde 2020 e de 60% na comparação com 2018.
“Não tem nada mais prioritário no Brasil do que combate à fome, independente de ideologia”, avalia Afonso. “Sem alimento a pessoa não consegue procurar emprego, estudar ou sair de casa. E tem de se humilhar para sobreviver.”
De acordo com a pesquisa, em 2022, 1 de cada 3 brasileiros já fez alguma coisa que lhe causou vergonha, tristeza ou constrangimento para conseguir alimento.
Esses novos indicadores da segurança alimentar apontam que 41% da população tem acesso estável a alimento em quantidade e qualidade adequados, índice que é superior entre brancos (53,2%) e inferior entre pretos e pardos (35%).
No outro extremo, a média dos brasileiros com fome é de 15%. Superam essa marca aquelas pessoas que residem nas regiões Norte (25,7%) e Nordeste (21%), na zona rural (18,6%), e em domicílios chefiados por mulheres (19,3%) ou por pessoas pretas e pardas (18,1%).
“Temos desigualdades históricas do país que nunca foram resolvidas: rural e urbana, homem e mulher, brancos e negros. E essas desigualdades se reproduzem na questão da fome”, explica a médica sanitarista Ana Maria Segall, professora aposentada da Unicamp e pesquisadora da Rede Penssan.
“É como se 41% da população estivesse protegida das crises econômica e política que já vinham se arrastando nos últimos ano e também do impacto da pandemia da Covid a partir de 2020”, analisa Segall.
“Por outro lado, quase 60% dos brasileiros vive numa situação de instabilidade que é muito afetada tanto pela crise quanto pela pandemia, que pegou essa população já numa condição desfavorável.”
Segurança alimentar é a situação em que há acesso pleno e estável a alimentos em qualidade e quantidade adequados.
Já a insegurança é dividida em três categorias: leve (quando o temor de faltar comida leva a família a restringir a qualidade dos alimentos), moderada (sem qualidade, há alimentos em quantidade insuficiente para todos) e grave (quando ninguém acessa alimentos em quantidade suficiente e se passa fome).
A médica destaca que entre 2004 e 2013 houve um incremento “muito significativo” no acesso das famílias a alimentos.
“Depois de 2013, você tem um precipício, e derrocada da segurança alimentar ocorre de maneira muito rápida. Houve uma piora rápida e muito expressiva do acesso a alimentos que continua até hoje e é pior dentro dos grupos que já viviam em algum nível de insegurança alimentar”, afirma ela, que fez parte do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), extinto pelo governo de Jair Bolsonaro (PL).
Em 2018, 5,8% dos brasileiros passavam fome. Em 2020, essa parcela subiu para 9% e, em 2022, chegou a 15,5%.
Isso quer dizer que, no intervalo de um ano, 14 milhões de brasileiros passaram a conviver com a fome em suas casas.
Para Francisco Menezes, consultor da ONG internacional ActionAid e ex-presidente do Consea (2004-2007), três das principais causas do aumento da fome no país são o empobrecimento da população, o desmonte de políticas sociais e de abastecimento, e a crise climática.
“Tivemos uma elevação muito forte do desemprego e um processo de precarização do trabalho com o crescimento da informalidade. Soma-se à perda de renda a inflação dos alimentos, que desde 2020 não arrefece, e atinge itens básicos como arroz, feijão e óleo de soja, além do gás e dos combustíveis”, aponta ele, para quem uma política de estoques de alimentos, abandonada pelo governo, é crucial num momento desfavorável.
Ele critica o modelo de acesso a benefícios de transferência de renda, que requer acesso a internet e a um computador ou celular. “Extrema pobreza e aplicativo não são coisas que combinem.”
O 2º Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar aponta que o maior percentual de pessoas em insegurança grave ou fome era entre quem solicitou mas não recebeu o auxílio emergencial aprovado pelo Congresso para o primeiro ano da pandemia (63%), seguido pelo grupo de quem sequer conseguiu solicitar o benefício (48,5%).
O levantamento mostra que há fome em 13,5% dos domicílios em que residem apenas adultos, enquanto entre as casas com três ou mais crianças ou jovens de até 18 anos o percentual sobe para 25,7%.
O dado é especialmente preocupante porque aponta para danos futuros. Estudos sugerem que o impacto da fome entre crianças e adolescentes tem efeitos deletérios imediatos na saúde e no bem-estar, com potencial comprometimento das potencialidades desses indivíduos.
Isso é o que mais mexe com Suelen Medeiros, 29, que mora com os quatro filhos na periferia sul da cidade de São Paulo. Desempregada e sem receber pensão do pai de seus filhos, ela conta que chega a ficar dias sem comer para privilegiar as refeições das crianças, que têm entre 2 e 12 anos.
“Eu aguento sentir fome, eles, não”, lamenta. “Mas fico tão ansiosa por causa das crianças que até perco a fome”, diz ela, que recebe uma cesta básica de doação mensalmente, mas que nem sempre é suficiente. “É muito difícil. Toda vez que meus filhos não têm o que comer, meu mundo desaba. Não ter condições de dar nem um pão de manhã a eles acaba comigo”, afirma ela. “Não vejo a hora de arranjar um trabalho.”
A pesquisa da Rede Penssan foi baseada em entrevistas realizadas em 12.745 domicílios de áreas urbanas e rurais de 577 municípios dos 26 estados e do Distrito Federal. Trata-se de uma parceria das organizações Ação da Cidadania, ActionAid Brasil, Fundação Friedrich Ebert Brasil, Ibirapitanga, Oxfam Brasil e Sesc.