Articulador, diplomático e criticado: Biografia traz retrato da trajetória do secretário-geral da ONU, António Guterres

Secretário-geral da ONU, António Guterres, fala durante reunião do Conselho de Segurança da ONU que discutiu a crise no Oriente Médio
Secretário-geral da ONU, António Guterres, fala durante reunião do Conselho de Segurança da ONU que discutiu a crise no Oriente Médio — Foto: ANGELA WEISS / AFP

Um dos políticos portugueses mais influentes do pós-Revolução dos Cravos,ex- comissário da ONU para os refugiados e secretário-geral da organização em um momento perigoso da política global, António Guterres é lembrado como um articulador hábil, com ideias conhecidas e consolidadas, e como alguém cujas palavras nem sempre agradam seus interlocutores. Da Rússia, ouviu o conselho para que evitasse a “politização” da ONU. De Israel, a alegação de que era uma “ameaça à paz”.

Em “O Mundo Não Tem Que Ser Assim” (Ed. Liser), os autores, Filipe Domingues e Pedro Latoeiro, mergulharam, por cinco anos, em documentos, relatos da juventude, visitas a locais que marcaram a trajetória de Guterres e ouviram alguns dos principais políticos portugueses e internacionais da História recente. No resultado, uma narrativa direta que vai desde os anos em que o secretário-geral entrou na política, em meio à Revolução dos Cravos, até a sequência de crises enfrentadas no comando da ONU, assim como seus planos de reforma da instituição. Em conversa com o GLOBO, antes do lançamento no Brasil, os dois contaram detalhes do trabalho de pesquisa, das mudanças de rumo na carreira de Guterres e até como ele reagiu ao ler o resultado final do trabalho.

Nessa pesquisa vocês entrevistaram cerca de 120 pessoas, analisaram documentos, escutaram relatos, e como foi esse processo, não apenas de pesquisa, mas também de compilar tanta informação?

Filipe Domingues – O nome António Guterres abre muitas portas. Nós tivemos conversas com pessoas que não conhecíamos, mas só o fato de estarmos a fazer uma coisa com a participação do António Guterres, do secretário-geral das Nações Unidas abriu muitas portas. Pudemos falar com personalidades como Jean-Claude Juncker, que foi presidente da Comissão Europeia, com Gerhard Schroeder, que foi chanceler da Alemanha, com José Maria Aznar (ex-premier da Espanha). Essas portas são difíceis de abrir, mas o nome de Guterres, que goza de um prestígio e de uma reputação internacional absolutamente avassaladoras, ajudou muito. Nós demoramos quase cinco anos em todo o processo de pesquisa, entrevistas e redação do livro. O próprio Guterres inicialmente resistiu um pouco à ideia de participar nesta biografia. Há uma uma característica que é muito comum em políticos deste nível que é ter algum tipo de ego ou vaidade. António Guterres não tem isso, ele não procura a fama ou a visibilidade. E quando nós, através de um amigo em comum, fizemos chegar a ele a ideia deste projeto, a resposta inicial foi negativa. Tivemos muito trabalho, foi um ano inteiro só para o convencê-lo da neutralidade, da imparcialidade, da objetividade e também da seriedade do projeto, e ajudou muito tê-lo a bordo.

Pedro Latoeiro – Nós partimos para este projeto com uma ótica jornalística, quisemos foi falar com pessoas, ir ao terreno, fomos a Genebra conhecer o Acnur, fomos a um campo de refugiados para cobrir a década que ele passou como comissário para os refugiados. Além da pesquisa acadêmica, nós valorizamos muito estar no terreno, falar com pessoas e usar o discurso direto. Foi uma abordagem no final do livro que também surpreendeu de forma positiva o próprio António Guterres. E não havia uma semana que passasse que não tivéssemos entrevistas para fazer e nessas entrevistas.

Nas citações a Guterres no livro pelos entrevistados, incluindo autoridades, vejo que há um certo tom de reverência ao secretário-geral…

FD – De fato, o prestígio dele internacional, a imagem, a credibilidade era esmagadora. Mas em Portugal, por causa da forma como saiu do cargo de primeiro-ministro [após uma derrota acachapante], ele não deixou uma imagem muito positiva, e foi quase como se esquecessem do António Guterres depois que saiu do cargo. Mas no exterior ele é reconhecido como uma pessoa exemplar, com um conhecimento da História Universal avassalador, e obviamente que junta esse conhecimento com a sensibilidade política que tem por ter sido primeiro-ministro. Ele consegue ler muito bem a pressão que as opiniões públicas exercem sobre as lideranças políticas. Tem muita facilidade sentir na pele o que é estar do outro lado, seja como um chefe de estado, seja como ministro das Relações Exteriores. E essa habilidade é comprovada com a própria eleição dele como secretário-geral das Nações Unidas. Ele tem os seus críticos, claro, mas é uma uma personalidade muito respeitada, quase consensual.

PL – Lembro de quando Samantha Power, hoje chefe da Usaid, a agência de cooperação internacional dos EUA, e ex-embaixadora na ONU, contou que quando se encontrou com Guterres ela estava incrédula: como alguém que estava à frente de uma organização no fundo de emergência e da assistência humanitária poderia citar de cor [Jürgen] Habermas. E ela disse que percebeu que estava à frente dela um homem de uma categoria diferente.

Portugal celebrou, na semana passada, os 50 anos da Revolução dos Cravos, que é um momento importante no estabelecimento da carreira política de Guterres. Ainda é possível ver elementos daquele Guterres de 1974 no secretário-geral hoje?

PL – Ao contrário de outras pessoas envolvidas na fundação do Partido Socialista português, ele não tem um histórico de contestar a ditadura portuguesa, ele tem um histórico sim de de militância religiosa. Aliás, ele entra um pouco na política pela doutrina social da Igreja, e não pela esquerda, ele não teve nenhum papel importante no 25 de abril. Mas com a revolução e o fim de uma ditadura de 48 anos, todos os espaços estavam em aberto, com uma elite que precisava ser substituída. Ele tem um papel muito importante de “desmarxização” do Partido Socialista, é um dos ideólogos do Mário Soares, e tem um papel para o partido mais para o centro, e diz hoje que nunca saiu do mesmo lugar em termos de posicionamento da esquerda política.

FD – Se é verdade que Guterres não foi importante para o 25 de abril, é verdade também que o 25 de abril foi importante para Guterres. Ele só ascendeu à política a partir do momento que houve uma intervenção democrática, e se mantém muito próximo, para não dizer monoliticamente, do ponto de vista ideológico do passado. Há uma uma ou outra questão que ele mudou de visão, como sobre o casamento entre as pessoas do mesmo sexo ou sobre o aborto, que quando ele era primeiro-ministro tinha posições muito conservadoras. Até costumávamos dizer que se ele não tivesse ido para o Partido Socialista, o partido mais próximo dele seria a Democracia Cristã (direita).

No livro vocês tratam dessa “transição de carreira”, de primeiro-ministro para nome do alto escalão do Sistema ONU, como alto comissário para os refugiados. Essa mudança de rumo estava presente na trajetória dele ou foi algo moldado pelas circunstâncias?

PL – Houve alguns convites, como para presidir a Comissão Europeia. O que acontece muito aqui em Portugal, aconteceu com Guterres, aconteceu com [José Manuel] Durão Barroso, e pode acontecer com António Costa, é que o primeiro-ministro inicia seu mandato muito focado em assuntos domésticos. Mas à medida que o tempo vai passando, ele vai descobrindo o jogo europeu, uma vez que o primeiro-ministro português tem assento no Conselho Europeu. Não é sempre que acontece, mas aconteceu com Guterres. A própria pessoa vai descobrindo que tem uma sapiência que desconhecia, e ele tinha um papel, mesmo a nível de Conselho Europeu, muito superior ao que seria de esperar, dada a relevância de Portugal. A passagem para a ONU se deveu a três fatores: a relação construída com Kofi Annan (secretário-geral da ONU entre 1997 e 2006), construída durante a crise no Timor-Leste; a presidência da Internacional Socialista, que assumiu quando era primeiro-ministro; e o caso Ruud Lubbers (antigo alto comissário para os refugiados), que foi acusado de assédio sexual e foi afastado e Kofi Annan queria escolher alguém de caráter “à prova de bala”.

António Guterres chama atenção como secretário-geral por suas declarações fortes, como recentemente sobre a guerra em Gaza. Como vocês veem essa postura, de alguém que faz costuras políticas importantes e, ao mesmo tempo, mantém posições firmes em público?

FD – A “tradição” diz que os secretários-gerais devem ser a voz dos que não têm voz, quase um ativista dos direitos humanos, e António Guterres, por causa das circunstâncias, neste segundo mandato, assumiu esse papel, e não só em relação a Israel, mas também nos casos de Rússia e Ucrânia. Apesar de considerarmos que poderiam ter sido feitas coisas de maneira diferente, o que fica é que, a partir do momento da invasão da Ucrânia pela Rússia, ele dá declarações muito fortes, e estamos falando de um país com assento permanente no Conselho de Segurança. Ele menciona o presidente [Vladimir] Putin pelo nome e o exorta a retirar as tropas, mas a Rússia praticamente desconsiderou o pedido. Sobre Israel, ele assume uma posição que, do ponto de vista humanitária é correta, e não podemos esquecer que a ONU tem uma posição ingrata sobre a Palestina, que não é um Estado reconhecido pela organização, mas pelo número de países do Sul Global que apoiam a causa palestina jamais deixou de estar nas Nações Unidas. E Israel e a ONU sempre tiveram uma relação muito complexa e muito difícil.

No ano passado, o então chanceler de Israel, Eli Cohen, disse que Guterres era um “perigo à paz mundial”, e houve declarações semelhantes vindas de países como a Rússia. Com base nas entrevistas que vocês fizeram e com informações de bastidores, como o secretário-geral lida com esse tipo de ataque?

PL – Eu gostaria, antes de responder, de fazer um ponto sobre Israel. Se vasculhamos a vida de Guterres desde 25 de abril [de 1974], vamos sempre encontrar a mesma coisa em relação a Israel, que é o combate ao antissemitismo e a defesa do princípio dos dois Estados. E não seria possível o secretário-geral das Nações Unidas ficar em silêncio diante de grosseiras violações do direito humanitário, para não falar nas evidências de crimes de guerra. Ele tem sido muito vocal neste sentido, até porque não podemos esquecer que esse é um dos pilares das Nações Unidas, e que o mandato dele não coincidiu com a expansão do multilateralismo ou de expansão dos valores da ONU.

FD – Ele é tão profissional e tão racional no exercício dos seus mandatos, e neste em particular, em que as críticas fazem parte e seguramente ele as aceita como uma inevitabilidade, sobretudo em temas tão polarizantes e maniqueístas. E mais um contexto à questão levantada pelo Pedro, ele sempre foi considerado um amigo de Israel. Israel sempre olhou para ele como um amigo. Mas diante dos fatos recentes, seria estranho se o secretário-geral das Nações Unidas, a uma altura dessas, não falasse sobre a situação, apontando para quem comete possíveis crimes de guerra e viola normas do direito internacional.

Guterres disse, no ano passado, que o sistema internacional precisa de uma reforma, ou corre o risco de se romper. Mesmo sabendo dos obstáculos, ele pretende deixar ao menos o caminho para mudanças pavimentado depois de deixar o cargo em 2026?

FD – Eu não tenho dúvidas sobre as intenções e sobre a convicção com que eu sempre defendeu e continua defendendo a necessidade urgente de reforma do sistema, para que ele se torne mais capaz de dar resposta aos problemas que foi desenhado para resolver. Mas as Nações Unidas são uma organização feita de Estados, e as Nações Unidas serão o que os Estados quiserem que elas sejam. Ele pode tentar influenciar, obviamente tem ferramentas à disposição, mas no final do dia quem vai decidir sobre a reforma das Nações Unidas são os Estados, em função dos seus próprios interesses.

PL – Eu arrisco a dizer que estamos no período em que essa reforma é mais impossível, não é fácil, olhando para trás, encontrar um Conselho de Segurança tão paralisado e tão imprevisível. Pensar que, na atual conjuntura, será possível reformar o Conselho de Segurança é quase uma ideia idílica. Ainda assim, muitas vezes o papel do secretário-geral é estudar qual seria a melhor forma de fazê-lo para que aconteça no momento possível.

Fonte: O Globo

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