Análise: Fala de líder português sobre reparação histórica é marco simbólico, mas faltam medidas concretas, dizem críticos

Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal, durante cerimônia de posse no Palácio da Ajuda em Lisboa
Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal, durante cerimônia de posse no Palácio da Ajuda em Lisboa — Foto: Zed Jameson/Bloomberg/ 02-04-2024

O presidente Marcelo Rebelo de Sousa admitiu, pela primeira vez, que Portugal tenha que pagar reparações pelos crimes cometidos no período colonial, incluindo a escravidão e o saque de bens dos povos colonizados. O chefe de Estado disse que o país “assume total responsabilidade” pelos erros do passado durante a comemoração do 25 de Abril, quando o país celebrou os 50 anos da Revolução dos Cravos, que pôs fim a quatro décadas de ditadura salazarista.

No ano passado, na mesma data, ele já havia ensaiado um pedido de desculpas no Parlamento, mas não chegou a concretizá-lo. Avançou mais um pouco agora ao falar de reparações, mas especialistas ouvidos por O GLOBO cobram medidas práticas e menos declarações.

— Temos que pagar os custos (pela escravidão). Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso — disse Sousa em um jantar oferecido por ele aos jornalistas estrangeiros em Lisboa, na noite de terça-feira.

Para Ana Paula Costa, pesquisadora do Instituto Português de Relações Internacionais e vice-presidente da Casa do Brasil de Lisboa, o discurso vale como marco simbólico. Mas ela lamenta a oportunidade que Sousa perdeu de provocar mais o governo da Aliança Democrática, de centro-direita, apresentando uma sugestão, mesmo informal, de medida, que algum partido de oposição ou o governo pudessem transformar em projeto para ir à votação no Parlamento.

— O lado simbólico é ok, foi importante marcar no discurso. Mas ainda não conseguimos progredir para uma medida concreta. O lado prático deixa muito a desejar e não avançamos nada sem projeto efetivo. O presidente poderia ter provocado mais o governo com algo pronto que não fosse só discurso. Quero acreditar que se abra caminho, mas acho que não será neste governo minoritário e de direita. Ainda mais com 50 deputados de ultradireita no Parlamento. Mas continuamos tentando — disse Costa.

Doutor em antropologia, professor da Universidade Howard, em Washington, e autor do livro “Human nature and delusions” (Natureza humana e ilusões, sem tradução no Brasil), sobre colonialismo, racismo e eugenia, o português Rui Diogo defende que o colonialismo europeu matou, ao longo dos séculos, mais que o Holocausto. E lamenta que não tenha sido o governo a fazer as declarações, uma vez que o presidente tem apenas poderes limitados.

— Marcelo Rebelo de Sousa está sendo mais direto agora. Mas se fosse o governo a falar, teria uma obrigação quase legal de fazer algo. Ao admitir, Portugal teria mesmo que pagar algo de volta — argumenta Diogo.

O antropólogo até observa o discurso do chefe de Estado português como uma tentativa de atrair atenção para o tema, mas de maneira vaga e que esbarra na persistência que parte da sociedade tem para interpretar de maneira positiva o colonialismo e a Era dos Descobrimentos.

— O presidente não tem poder institucional de fazer o que for. E não parece que o Partido Social Democrata (líder da AD) fará alguma coisa, porque é o contrário do que pensam — explicou Diogo.

Em uma publicação na rede social X (antigo Twitter), o partido de extrema direita Chega classificou a declaração do chefe de Estado como “vergonha”, afirmando que “se houvesse uma forma de destituir o presidente da República neste momento”, o partido faria. O Chega ganhou força nos últimos anos com um forte discurso anti-imigração e falas xenofóbicas recorrentes. Na última eleição, conquistou 50 cadeiras no Parlamento, consolidando-se como a terceira força da política nacional.

Organizadora da coletânea de textos “Volta para a tua terra”, a pesquisadora e escritora Manuella Bezerra de Melo acredita que a declaração de Sousa aconteceu em boa hora. Mas cobra compromissos.

— Iniciativa urgente é mudar os livros escolares para outros que contem a verdade sobre a colonização, porque as crianças aprendem que os portugueses levaram a civilização para o mundo e que foram os bons colonizadores, o que é mentira. Também é necessário devolver os pertences históricos dos povos que foram roubados. Por fim, é urgente aprovar políticas públicas de reparação também para os imigrantes de ex-colônias que vieram viver em Portugal porque tiveram seus países devastados pela ação colonialista — disse Melo.

Portugal começou a debater a reparação de maneira mais objetiva no fim de 2022, quando o então governo do Partido Socialista (PS) prometeu fazer um inventário organizado por um conjunto especialistas, que deveriam listar os bens culturais, obras de arte, objetos de culto e restos mortais em poder do país para começar a devolvê-los ao Brasil e a ex-colônias africanas. Questionado ontem pelo GLOBO, o Ministério da Cultura, responsável pela medida, não respondeu.

Meses depois, no Parlamento durante a celebração do 25 de Abril em 2023, e na presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Sousa faria o primeiro discurso sobre a responsabilização e desculpa pelo passado colonialista de Portugal:

— Não é apenas pedir desculpa, devida, sem dúvida, por aquilo que fizemos, porque pedir desculpa é às vezes o que há de mais fácil, pede-se desculpa, vira-se as costas, e está cumprida a função. Não, é o assumir a responsabilidade para o futuro daquilo que de bom e de mau fizemos no passado

Na última terça-feira, voltou a falar em pedir perdão, mas sem pedir de maneira oficial, porque, segundo ele disse novamente, “pedir desculpas é a parte mais fácil”.

Durante a fase colonial, cerca de 5,8 milhões de escravizados foram traficados por Portugal, quase metade dos 12,5 milhões sequestrados e levados da África por colonizadores europeus.

Fonte: O Globo

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