Ana Maria Gonçalves: ‘Nossos ancestrais correram para que a gente pudesse caminhar’

Ana Maria Gonçalves é entrevistada do programa Miriam Leitão, na Globonews
Ana Maria Gonçalves é entrevistada do programa Miriam Leitão, na Globonews — Foto: Divulgação

O livro ‘”Um defeito de cor”, da escritora Ana Maria Gonçalves, entrou na lista dos mais vendidos depois de virar enredo da Portela, que foi eleita a melhor escola do Grupo Especial pelo júri do Estandarte de Ouro 2024, ficou em quinto lugar e volta a Marquês de Sapucaí no sábado, no Desfile das Campeãs. Conversei com a autora no meu programa na GloboNews, que foi ao ar na noite de quarta-feira, e ela disse que ainda não tinha racionalizado toda a emoção que tinha sentido na avenida. Conversamos sobre o desfile, o processo de escrita do livro, a luta contra o racismo e a importância das cotas.

Pergunta: Você consegue descrever a emoção que foi atravessar Sapucaí e ver que o seu livro estava ali sendo descrito na avenida?

Resposta: Eu estou vivendo esse momento, vou viver até o sábado agora no desfile das Campeãs, e depois tentar racionalizar isso porque realmente é algo que não cabe palavras por enquanto. A literatura é uma arte tão elitista ainda no Brasil, é um país onde o livro é caro, onde a gente precisa começar a discutir impostos sobre livros para popularizar essa arte, que deve ser acessível para todo o mundo. E o que a Portela fez foi exatamente isso. Pegar uma história que eu estava contando num livro e elevar a um nível de alcance de pessoas, trazer mais gente para contar a sua própria história dentro do enredo. Ainda não sei descrever o que que aconteceu ali. Foi catarse coletiva. Foi uma grande homenagem às mães negras do Brasil. Foi uma grande homenagem aos filhos dessas mulheres.

Fiquei pensando muito nisso enquanto acompanhava o desfile na avenida. É uma discussão sobre a maternidade, sobre a mãe que busca o filho. E tinham lá várias mães que perderam seus filhos e suas filhas para a violência, como dona Marinete, que perdeu Marielle (Franco), entre outras mães. Então foi muito além.

Acho que o que os carnavalescos, Antônio Gonzaga e André Rodrigues, dois jovens negros – aliás, pela primeira vez em 100 anos da Portela que a gente tem ali, dois carnavalescos negros, falando para uma comunidade que é de base negra – e eles fizeram uma abordagem muito interessante, muito inteligente. Eles falaram: “a gente quer falar do afeto, eu quero falar do afeto que eu sinto pela minha mãe”. E nisso de falar a partir desse sentimento que acaba unindo todo mundo e falando de todas as mães. Então o livro é uma carta da mãe para o filho e o enredo é a resposta, é uma carta do Luís Gama para a Luísa Mahin.

Você fala que você encontrou manuscritos em Itaparica e que eles te inspiraram. Você pode falar um pouco mais sobre esses manuscritos?

Tudo o que está ali no prólogo é verdade, menos a questão dos manuscritos. O prólogo foi a primeira coisa que eu escrevi do livro, foi um livro que eu escrevi de forma bem linear. E depois eu falei: “acho que eu vou tirar esse prólogo, não tem nada a ver”, mas minha editora perguntou dos manuscritos, eu falei: “nossa, está convincente o texto assim?”. Então resolvi deixar. E é interessante que depois disso, eu percebo que fomenta um tipo de conversa que eu acho que a gente precisa ter no Brasil também sobre a questão racial, que é a questão de documentos. Os documentos sobre a escravidão são os nossos próprios corpos, está escrito ali, está no nosso DNA, está na nossa aparência.

E uma das coisas que a gente sempre é cobrado na discussão racial no Brasil é ter que apresentar dados, ter que apresentar fatos, ter que extremamente bem documentada e bem lida, bem instruída para conversa, enquanto do outro lado, principalmente das pessoas brancas, a gente tem um grande achismo. Ou seja, para a gente cobrar dos documentos, para as outras pessoas, basta o que elas digam: ” é o que eu penso, é o que eu sinto”.

Achei interessante deixar ali essa questão para a gente também começar a pensar sobre esse documento, que não necessariamente um documento escrito, é um documento que está no corpo, que está na história, que está no nosso modo de existir, de estar em sociedade.

Assim como os carnavalescos, quando escreveu o livro você também era muito jovem. Como é que você se sente também se sentia na época assim, tão jovem, com esse encargo de ajudar a construir uma história onde há tantos pontos faltantes?

Acho que eu não pensei, eu escrevi. Era um livro que eu queria ter lido e não encontrei. Um gênero que hoje é chamado de romance de formação, e eu falo, foi o meu romance de formação para mim também. Ou seja, essa história eu não conhecia. Foi um livro, é uma pesquisa e uma escrita que através do qual eu comecei a me entender como mulher negra, num país escravocrata, num país racista, num país machista.

Entender de onde é que vem todas essas doenças sociais brasileiras e como é que elas me atingem hoje em dia. E que está muito bem falado no enredo e no samba com aquele verso: “Nasci quilombo e cresci favela”.

Você fez uma grande pesquisa sobre a escravidão, sobre a religiosidade afro-brasileira, conflitos coloniais na África. Como foi seu processo?

Foram cinco anos ao todo, dois de pesquisa em que realmente eu só li e tomei notações, um ano de escrita e mais dois anos de reescrita. Então foi um processo de imersão. Eu trabalhava todos os dias da semana, 10 a 12 horas por dia. Entrei no processo de pesquisa, acreditando que não tinha muita documentação sobre a escravidão no Brasil. A gente aprende isso, que o Rui Barbosa queimou tudo. Mas vi a quantidade de informação que quando você vai atrás, você consegue. E principalmente porque eu fui para jornais, para revistas de época, tentando entender realmente quem eram aquelas pessoas. Através da própria palavra delas, a partir de anúncios de compra e venda de escravizados, a partir de anúncios de gente oferecendo serviços ou querendo alguém para realizar determinado serviço. Então foi um processo de imersão ali em que eu conseguia muita informação, principalmente a partir do momento em que você aprende a ler nas entrelinhas desses documentos.

Por exemplo, tinham documentos de venda de uma escrava com tonsura, não raspada. A tonsura não raspada é aquela falta de cabelo em cima da cabeça. Era chamada escrava de ganho que vendia quitute quente na rua. Então tanto o tacho quente em cima da cabeça, o cabelo não crescia mais. Você aprende a ler esse tipo de documento e dali tinha uma história inteira. Então, através desse anúncio eu já conseguia entender toda a vida daquela mulher.

Vi também que você leu relatos de viajantes como Maria Graham, exatamente que foram importantes para descrever com olhos críticos, que era aquela cena brasileira que que estavam tão acostumados no século 19…

Para os brasileiros era o dia a dia. Esses viajantes chegavam, tentavam descrever aquilo que eles estavam vendo pela primeira vez, o que é uma coisa que a gente já faz muito com a escravidão. A gente está vendo pela primeira vez aquele período, principalmente através dos olhos de uma mulher escravizada.

Ela é conhecida no Brasil como Luiza Mahin, que virou uma marca. Você não usa isso, usa Kehinde. Por que?

Eu acho que eu quis dar uma identidade para ela, independente dos papéis sociais que ela tinha, que são de ser mãe, de ser mulher, de ser revolucionária, de ser empresária. Ela tem uma parte do livro em que eu falo que ela se joga ao mar quando chega no Brasil para não ser batizada, e fala: “Preciso conservar o nome com que eu fui apresentada aos meus orixás e aos oduns da minha avó, o nome da minha ancestralidade”, que é uma das coisas que uma das primeiras coisas que faziam com as pessoas escravizadas.

Mahin é o grupo étnico dela, de onde ela vem. Você tira o Mahin e coloca o nome do escravizador do senhor, que era o Gama. Você nunca mais consegue traçar essa origem. Então ali eu queria que ela assumisse, que ela conservasse essa identidade dela, que para ela era muito importante.

Ou seja, ela era antes de tudo, ela era Kehinde. Eu falo que ela faz um pacto de viver a qualquer custo. E a partir daí ela vai com seus erros e acertos, com as suas dúvidas, com os seus traumas, com as coisas boas e ruins que ela tem que fazer.

Você conta sobre o dinheiro coletivo comprava a liberdade de um e todo mundo fazia um sistema de poupança. Pouca gente sabe disso, mas é um sistema econômico muito sofisticado, construído pelos escravizados.

É economia pura. Como é que se vive num sistema em que a tua força de trabalho não é valorizada? Eles tinham que arrumar modos ali por trás desse tecido social para conseguir sobreviver, e que são coisas que se faz até hoje em dia. Esse sentimento de comunidade de “eu não ando só, eu não cheguei aqui sozinha e não cheguei”. Por exemplo, as famílias pretas no Brasil. A gente consegue estudar, a gente consegue fazer universidade, porque está todo mundo pagando, tem um dia que está um tio pagando para você a passagem para você e o outro vem com a mensalidade. Ou seja, é um processo coletivo de economia, de coletiva criativa, que traça na sociedade até hoje.

No livro, a narradora está falando com o leitor, mas em determinado momento se revela que ela falava para alguém específico, era uma carta ao filho. Por que você fez esse caminho literário?

A gente volta de novo à questão do nome. A partir do momento em que ela conta o batismo do filho, ou seja, ele recebe um nome. Ele recebe uma inscrição dele na sociedade. É que ela começa a falar com ele. Ou seja, ele passa a existir a partir dali, quando ele é apresentado à ancestralidade, a partir do batismo. Eu tentei manter no livro umas determinadas camadas. E que, por exemplo, o pessoal do candomblé, quando entende essa questão da do batismo, de dar o nome para alguém e a partir desse nome, ele passar a existir e a partir dessa existência em que é que ela começa a falar com ele, então eles já entendem que foi porque ele foi batizado, que é quando surge o omotunde, que está no samba-enredo. Tem umas coisas muito sutis de conversa do samba, da letra do samba com o livro, que é muito lindo o que ele conseguiu fazer.

Naquele trecho: “Em cada prece, em cada sonho, nega. Eu te sinto, nega. Seja onde for”. E ela responde: “Em cada canto, em cada sonho, nego. Eu te cuido, nego. Cá de onde estou”.

Além do livro, queria levantar a questão da identidade negra. As últimas duas décadas foram fundamentais na busca dessa identidade?

Acho que a gente tem avançado bastante nesses últimos tempos. Ou seja, os ancestrais correram para que a gente pudesse caminhar. Eu acho que a gente começou a ter espaço para poder falar da gente.

Porque antes era uma identidade construída a partir de um olhar branco, a partir de quem tinha os meios de comunicação ou os meios de produção. A gente ouvia falar da gente pelo outro. Acredito que, de uns 20 anos para cá, a gente começou, talvez com a internet, talvez com realmente uma cobrança maior, não de representatividade mais. Eu acho que é uma palavra que, às vezes, nos tolhe muito, porque a questão da representatividade acaba sendo as mesmas pessoas, representando um mesmo grupo o tempo inteiro.

A gente quer presença. Não quero mais saber de representatividade. Eu quero presença. Eu não quero mais estar sozinha nos espaços. Principalmente sendo escritora ou intelectual, mulher negra, a maioria das vezes eu estou sozinha nos espaços, não tem mais uma outra. Não chamam porque acreditam que eu vou estar representando e falando por vários.

Você acha que todo esse debate ganhou mais densidade com as cotas raciais?

Não tenho a menor dúvida. Eu acho que a cota é um modo de distribuição de poder que durante muito tempo a gente não tinha acesso. As cotas tornaram a universidade mais diversa, tornaram a universidade mais interessante. Para você ter uma ideia, no início, quando eu lancei o “Um defeito de cor”, principalmente mulheres negras falavam “eu quero muito trabalhar com o teu livro na universidade, mas a minha professora, o meu professor, todos brancos não quer me deixar trabalhar com o livro porque ele não conhece os livros com os quais trabalhar um tema como esse”. Então eu ajudava, mas as pessoas realmente não aceitavam, tinham ali um cânion dentro da universidade que um livro desse não entrava. Então, com as cotas, essas mesmas mulheres que estavam ali querendo orientadores que aceitassem trabalhar com elas com o livro, hoje elas estão lá orientando. E a grande maioria delas são cotistas.

Eu acho que não só uma universidade mais diversa em termos pessoais, mas uma universidade muito mais interessante, rica e diversa em termo de quem está sendo objeto de estudo lá dentro, que é “Um defeito de cor”, que são os livros da Conceição Evaristo, os livros da Eliana Alves Cruz, do Jefferson Tenório, Paulo Lins, Cidinha da Silva. Ou seja, está todo mundo podendo trabalhar esses livros hoje porque os cotistas de 15, 20 anos atrás, ou seja, esses cotistas estão lá dentro hoje e eles estão completamente bem mais confortáveis em ter uma literatura como a nossa.

Queria que você falasse um pouco sobre o combate do racismo no Brasil hoje. Quanto que a gente precisa ainda trabalhar para ter uma política realmente antirracista no Brasil?

Acho que a gente precisa ter espaço de decisão. Ter negros em locais de trabalho, como na televisão, por exemplo. Mas a gente ainda não está nesses lugares de decisão. A gente não é um diretor, a gente não tem alguém que está decidindo qual é a pauta.

E quem decide a pauta ainda não é a gente. Então acho que a gente precisa estar nesses lugares para poder decidir qual é o tema, qual é o assunto, quais são as pessoas que a gente vai chamar para tratar desse assunto. Para que a gente realmente possa tentar começar a equilibrar essa balança. Porque racismo é ignorância. Ignorância é algo ativo, não é algo passivo. As pessoas escolhem ser ignorantes porque estão defendendo um espaço de privilégio, às vezes sem mesmo saber que estão.

Ao saber que estão defendendo o espaço de privilégio em detrimento de outros, elas vão ter que tomar uma posição e muitas vezes você escolhe não saber, não se formar, não querer se importar, para não ter que realmente se posicionar. Eu acho que é se posicionar no sentido de assim também em termos de entender quais são as parcerias.

Você é uma parceira da gente, de movimento negro, desde o início das cotas. Eu lembro de ler os teus artigos nos jornais, de te ver falar sobre cotas na TV, muitas vezes você ser a única pessoa branca falando sobre isso e defendendo.

Então esse posicionamento é importante. Muitas vezes as pessoas brancas falam: “O que eu posso fazer pra ajudar”? Eu falo: “Use o teu lugar de privilégio para difundir informação”.

Tivemos muitos avanços, mas retrocessos também. Não é porque teve reação. A gente teve quatro anos num governo que o presidente falava sobre os negros usando uma medida de animal. A luta continua, tem muito avançar e isso ser natural e o Brasil se entender como maioria negra…

E entender que não dá para abrir mão de mais da metade da sua população não conseguir desenvolver em seu pleno potencial, que é isso que o racismo faz. Ele limita a população negra a um certo ponto em que ela não se desenvolve potencialmente tudo o que ela poderia. A gente abre mão disso. Um país racista abre mão disso, um país machista abre mão disso. A gente não pode mais, a gente tem que contar com todo mundo.

Seu livro é um long seller, não é um livro que vai sendo vendido ao longo do tempo e continua uma carreira ao longo do tempo. O que é que você diria para quem não leu o livro?

O livro está indo para a 39ª reimpressão. Leiam, enfrentem o livro. Acho que o tamanho (quase mil páginas), às vezes intimida um pouco as pessoas. Mas veja o desfile, veja a exposição, que está no Muncab, em Salvador. Está indo para São Paulo agora em abril, no Sesc Pinheiros. Então, ou seja, tem vários modos de entrar na história que seja através do desfile ou que seja através da exposição ou mesmo através do livro. Dá um jeitinho de entrar e leia.

(Transcrição e edição Ana Carolina Diniz)

Fonte: O Globo

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