A gigante Columbia em meio à guerra de Gaza

Manifestante protesta do lado de fora do acampamento estabelecido em apoio aos palestinos em Gaza na Universidade Columbia
Manifestante protesta do lado de fora do acampamento estabelecido em apoio aos palestinos em Gaza na Universidade Columbia — Foto: Alex Kent/ AFP

A Columbia é a grande universidade de Nova York. Possui respeitadas escolas de Medicina, Direito, Administração, Cinema, Jornalismo, Engenharia, Arquitetura e Relações Internacionais. Seus programas de doutorado estão entre os melhores do planeta em Humanas, Exatas e Biológicas. De Filosofia a Matemática, a Columbia sempre está no topo. Integra a Ivy League, que é o grupo das oito tradicionais universidades dos EUA, junto com Princeton, Yale, Harvard, Penn, Dartmouth, Brown e Cornell. Uma das mais disputadas graduações americanas, a universidade possui estudantes das mais variadas partes do planeta. Com o seu imponente campus principal na Broadway com a 116, é ultraurbana, no meio de Manhattan, bem perto do Harlem. Ao todo, 87 pessoas associadas à Columbia (professores, pesquisadores e alunos) receberam o Nobel. Foram alunos da Columbia quatro ex-presidentes dos EUA – Barack Obama, Dwight Eisenhower, Theodore Roosevelt e Franklin Roosevelt. Nove juízes da Suprema Corte ao longo da história foram estudantes da universidade.

A Columbia também possui um histórico de manifestações, desde 1968, durante a Guerra do Vietnã, e décadas mais tarde, na Guerra do Iraque. No Barnard College, um dos braços da universidade, estudaram muitas mulheres que lideraram movimentos feministas nos EUA. Os estudantes da Columbia possuem um invejado “core curriculum”, com aulas de artes, música, ciências, literatura, línguas estrangeiras e assuntos contemporâneos. Leem os clássicos, vão a apresentações de óperas no Lincoln Center, estudam ciência no Museu de História Natural e artes no MoMa e no Metropolitan Museum.

Não é barato, no entanto, estudar na Columbia. É uma das universidades mais caras dos EUA. O custo total, estimado pela universidade, é US$ 88 mil (R$ 456 mil). Muitos alunos (a maioria) , porém, não pagam todo esse valor. Há uma série de bolsas, inclusive integrais, e também levam em consideração a renda familiar na hora de cobrar. A quase totalidade dos estudantes somente tiveram notas A (a máxima) na high school (ensino médio). Muitos são fluentes em outras línguas, praticam esportes e tocam instrumentos musicais. Apenas 4% dos estudantes que aplicaram para estudar na Columbia foram aceitos em 2022. Ao todo, há mais de 23 mil estudantes e acadêmicos estrangeiros, de 162 países. China, Índia, Canadá, Coreia do Sul e França são os cinco primeiros, com o Brasil em nono lugar.

Tive o privilégio de ter feito meu mestrado em Relações Internacionais na Columbia. Foram dois anos entre 2005 e 2007 na School of International and Public Affairs. Meu foco foi em Oriente Médio, nessa universidade que teve como principal nome Edward Said. Estudei com alguns dos maiores nomes da área, como Rashid Khalidi e Fawaz Traboulsi. Entre meus melhores amigos, havia um israelense (Boaz), uma libanesa-armênia (Karma), uma síria-americana (Samia) e uma palestina-americana (Bassema). Até hoje, frequento a universidade para eventos. Semanas atrás, dei uma palestra na Escola de Direito sobre as relações Brasil-EUA. Levei recentemente meus filhos para passear no campus – ambos nasceram no Columbia Presbyterian Hospital, da universidade e um dos melhores do mundo.

Sei que esse início de texto foi longo, mas achei necessário explicar antes de abordar a questão dos atuais protestos. Quando eclodiu a Guerra em Gaza, depois do atentado terrorista de 7 de outubro cometido pelo Hamas, houve uma enorme polarização não apenas no campus da Columbia como também em diferentes partes do mundo, incluindo o Brasil. A questão israelo-palestina é certamente a que mais desperta paixões. Seus defensores são extremamente engajados. Há diferentes narrativas históricas. Essa dinâmica se intensificou com o maior atentado terrorista sofrido por Israel em sua História, seguido por uma resposta israelense em Gaza que resultou no maior número de vítimas palestinas também na História. Nunca houve um momento como esse desde 1948.

A Columbia, por ser a grande universidade de Nova York, naturalmente vivenciou de forma mais intensa. Fica na cidade com o maior número de judeus fora de Israel em todo o planeta. Há uma expressiva população muçulmana. Também é um dos lugares com maior imigração palestina, formada tanto por cristãos como muçulmanos. Aqui também fica a sede das Nações Unidas e dos maiores órgãos de imprensa dos EUA – New York Times, Wall Street Journal, CNN, Fox News, NBC, CBS, ABC e New Yorker. Existe ainda um histórico de manifestações na universidade. Para completar, a Columbia possui a maior proporção de alunos judeus de todas as grandes universidades americanas, sendo uma comunidade judaica extremamente plural, de diferentes correntes do judaísmo (reformistas, conservadores, ortodoxos e ultra-ortodoxos) e com posições políticas distintas tanto sobre Israel-Palestina como também sobre os EUA. Em geral, são progressistas, eleitores do Partido Democrata, críticos de Netanyahu, mas com forte apego a Israel.

A reitora Minouche Shafik havia acabado de assumir o cargo quando ocorreu o atentado. Nascida no Egito, cresceu nos EUA, vivendo em diferentes estados. Depois, foi para o Reino Unido, onde fez a sua carreira acadêmica, com doutorado em Oxford. Trabalhou em cargos de direção no Banco da Inglaterra e no FMI, além de em determinados momentos voltar aos EUA para dar aulas em universidades como Georgetown e Pensilvânia. Dirigiu, antes de ir para a Columbia, a London School of Economics. Ela sucedeu Lee Bolinger, que estava na presidência da universidade há duas décadas, em um cargo que foi ocupado no passado por Dwight Eisenhower, que viria a ser presidente dos EUA.

As manifestações na Columbia foram intensas tanto a favor dos palestinos como a favor dos israelenses em outubro e novembro. A universidade, em um ato criticado internamente, decidiu suspender dois grupos por não terem pedido permissão para manifestações – algo que nunca havia ocorrido antes. Nos meses seguintes, o cenário havia se acalmado. Estive semanas atrás na Columbia e não vi nenhuma manifestação. Nada. Literalmente, foi dias antes da situação escalar. Esse agravamento ocorreu porque Shafik decidiu suspender alunos e reprimir manifestações pró-Palestina antes de prestar depoimento ao Congresso dos EUA. O temor dela era de terminar como as reitoras de Harvard e da Universidade da Pensilvânia, que acabaram deixando seus cargos no ano passado após deporem para deputados e senadores. Ela quis evitar atritos com deputados republicanos.

O cálculo dela, no entanto, deu errado. O movimento dos estudantes ganhou força e acabou se espalhando por universidades de todos os EUA e agora estamos diante de um impasse com a ocupação de um prédio da Columbia. Shafik precisa navegar entre pressão de doadores (muitos deles simpáticos a Israel), professores (defensores do direito de os alunos se manifestarem), políticos republicanos e alguns democratas (em sua maioria, pró-Israel) e os próprios alunos (a maioria pró-Palestina).

Dois pontos têm gerado bastante discussão. O primeiro é sobre a motivação dos protestos. Em sua maioria, os protestos pró-Palestina pedem um cessar-fogo em Gaza, o fim da ocupação israelense da Cisjordânia e desinvestimento do fundo bilionário da universidade em empresas ligadas a Israel. Os dois primeiros pontos são amparados inclusive por resoluções da ONU e pela maior parte dos países do mundo, incluindo o governo Biden nos EUA. O terceiro já gera mais polêmica. Os críticos, porém, argumentam que as manifestações são antissemitas. Acompanhando o cenário e conversando com estudantes, há uma série de nuances. A maior parte dos protestos são genuinamente pró-Palestina. Mas houve sim episódios de antissemitismo, incluindo de um dos líderes da manifestação. Essas pessoas devem ser corretamente punidas, mas não deveriam punir os demais que não se envolveram em atos antissemitas e apenas defendem os palestinos ou criticam as ações de Israel (e há muitos judeus nas manifestações pró-Palestina). Ao mesmo tempo, estudantes judeus ou de qualquer outra religião devem ter o direito de ir à universidade sem se sentirem ameaçados.

A segunda questão envolve o acampamento dos manifestantes formado nos últimos dias no campus e a tomada hoje do Hamilton Hall, um simbólico prédio ocupado por manifestantes em 1968. O cenário agora é bem mais grave e não vejo uma solução fácil para a universidade nesta última semana de aula, quando os alunos entregam os papers e fazem suas provas finais, mas estão impedidos de entrar no campus desde a manhã desta terça-feira. As medidas tomadas até agora pela reitora tiveram efeito contrário ao desejado. O ideal seria uma saída negociada, sem envolvimento da polícia. Vamos acompanhar.

Espero apenas que os estudantes tenham a oportunidade de participar da emocionante cerimônia de formatura no campus da universidade que sempre se encerra ao som de “New York, New York”, de Frank Sinatra, encerrando a inesquecível experiência de estudar nesta universidade que é a cara de Nova York.

Fonte: O Globo

© 2024 Blog do Marcos Dantas. Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução total ou parcial do conteúdo deste site sem prévia autorização.