A aplicação da lei brasileira em plataformas sediadas fora do país

Celular tirando foto de paisagem e aparição de outras redes conectadas
Articulista afirma que legislação digital precisa ser atualizada para considerar novas relações de poder, que evidenciam a necessidade latente de maior cooperação internacional na esfera jurídica

O avanço tecnológico e a ubiquidade da internet trouxeram ao palco global desafios jurídicos sem precedentes, especialmente no que tange à aplicação da legislação nacional em um contexto digital internacionalizado. Mais do que isso, a sociedade e os tribunais ainda estão aprendendo como é a dinâmica do uso da tecnologia e os inevitáveis ilícitos praticados com o uso de plataformas digitais, como as redes sociais.

Pensando em atividades que podem ser interpretadas como abusivas por aplicativos de internet, temos vivido tempos em que muitos atos são analisados sob a perspectiva de ilícitos. Há, inclusive, casos concretos em que houve determinação judicial de bloqueio relacionados a essas interpretações de ilicitude no WhatsApp e, mais recentemente, com o Telegram.

O assunto não é tão novo. Pelo menos, desde 2015, esse tema tem estado em evidência. Naquele ano, o WhatsApp foi bloqueado judicialmente duas vezes. No ano seguinte, voltou a ter seu funcionamento impedido no país em outras duas ocasiões.

Mais recentemente, o alvo dos bloqueios foi o Telegram. Pela 1ª vez, em março de 2022, por determinação do ministro Alexandre de Moraes, depois da representação da Polícia Federal em razão de investigação sobre desinformação. A 2ª vez, em abril de 2023, por decisão da Justiça federal em caso de investigação de grupos antissemitas.

Em razão de situações como essas, desde 2020, o STF (Supremo Tribunal Federal) analisa ações que têm o potencial de alterar significativamente a maneira como as leis são praticadas em aplicativos de comunicação no Brasil.

Uma dessas ações é a ADI 5527, iniciada em maio de 2020 e proposta pelo PR (Partido da República), que contesta a legalidade dos trechos do MCI (Marco Civil da Internet). Esses artigos serviram de base legal para decisões judiciais que impuseram a suspensão de serviços de troca de mensagens on-line.

Paralelamente, também começou a ser julgada a ADPF 403, movida pelo Cidadania, em resposta a uma decisão judicial que ordenou o bloqueio nacional do WhatsApp depois que a empresa se recusou a fornecer conteúdos de mensagens em uma investigação.

O ministro Dias Toffoli declarou que pretende levar a demanda para julgamento ainda neste 1º semestre de 2024, depois de adiamentos que visaram a dar ao Congresso mais tempo para formular uma legislação específica para o setor.

Porém, o PL 2.630 de 2020, o mais próximo de ser julgado, que abordaria temas que interfeririam nas responsabilidades das plataformas, foi descartado em absoluto pelo presidente da Câmara, Arthur Lira. O chefe da Casa Baixa declarou que criará um grupo de trabalho para debater a regulação das redes sociais e que o conhecido PL das fake news“é muito polêmico”.

Para completar esse cenário desafiador, recentemente Elon Musk encampou campanha contra o ministro Alexandre de Moraes, inclusive dizendo que deixaria de cumprir decisões judiciais aqui no Brasil.

Ou seja, há uma conjuntura absolutamente caótica de fatos intimamente relacionados com as plataformas digitais, ou que as circundam. É necessário, assim, levar em consideração todo esse contexto para avaliar a aplicação da lei brasileira a empresas e pessoas, mesmo que estrangeiras.

No Brasil, a lei 12.965 de 2014 é a principal legislação de normas aplicáveis a plataformas digitais, tanto que ficou conhecida como Marco Civil de Internet. Dispõe em seu artigo 2º dos fundamentos da internet no país e no artigo 3º dos princípios.

Ao destacar valores como a liberdade de expressão, a escala mundial da rede, a promoção dos direitos humanos, a defesa da pluralidade e a diversidade, a legislação sublinha a relevância do direito digital em um contexto global.

Esses dispositivos da lei moldam a governança da internet no Brasil, mas também ressaltam a complexidade de aplicar e harmonizar leis digitais em um ambiente extraterritorial, no qual normas nacionais devem coexistir com a natureza inerentemente internacional da rede.

Isso implica na necessidade de cooperação e diálogo contínuos entre diferentes jurisdições para assegurar que a internet permaneça como um espaço aberto, colaborativo e respeitador dos fundamentos universais dos direitos humanos e da cidadania digital.

Já os princípios do artigo 3º abordam aspectos essenciais como a liberdade de expressão, a privacidade, a proteção de dados pessoais e a neutralidade da rede, alinhados à Constituição.

Ao enfatizar a importância da segurança, estabilidade e funcionalidade da rede, junto com a responsabilização dos agentes digitais e a preservação da natureza participativa da internet, o texto ressalta o compromisso do direito digital com a criação de um ambiente on-line seguro, aberto e democrático.

Tais princípios são fundamentais para a aplicação do direito digital de maneira que respeite tanto a legislação nacional quanto se adeque aos padrões e as práticas internacionais, refletindo sobre a aplicação extraterritorial de leis em um contexto globalizado, em que a interoperabilidade e a colaboração entre diferentes jurisdições se fazem cada vez mais necessárias.

Nesse sentido, o Brasil estabelece um marco regulatório que assegura a aplicação da legislação brasileira a empresas que coletam, armazenam ou tratam dados em território nacional. Isso, apesar da globalização digital desafiar a noção tradicional de soberania jurídica, que se baseia em limites territoriais claramente definidos.

Essa situação ocorre, pois o texto da legislação menciona que empresas que oferecem serviços no Brasil, independentemente de sua origem ou da localização de seus dados, se encontram sob a égide do ordenamento jurídico brasileiro.

Essa norma é reforçada pelo entendimento jurisprudencial do STJ (Superior Tribunal de Justiça), havendo pelo menos 6 casos nesse sentido expressos em informativo (PDF – 850 kB) da Corte –todos recentes de 2018 a 2022.

Apesar da existência de legislação e de entendimento jurisprudencial, há uma evidente complexidade de regular o espaço digital, uma arena intrinsecamente internacional e com aspectos obscuros de aplicação da lei, especialmente em razão da ubiquidade das plataformas digitais.

Enquanto o MCI representa um avanço significativo na tentativa de assegurar a soberania digital do Brasil, também revela a necessidade de uma cooperação jurídica internacional efetiva, que é indispensável não só na coleta de provas produzidas em jurisdições estrangeiras, mas também na harmonização de leis que transcendem fronteiras nacionais, respeitando os direitos fundamentais dos usuários da internet.

O direito digital, em sua essência, desafia a aplicação unilateral de leis nacionais em um contexto global. Nesse ponto, o entendimento jurisprudencial do STJ, ao destacar a submissão de empresas estrangeiras ao direito brasileiro, serve como um importante precedente na afirmação da jurisdição digital do país.

Isso não significa, entretanto, que seja suficiente e efetivo. Por isso, há urgência de diálogos e acordos internacionais que promovam uma regulação eficaz e respeitosa da soberania de cada país, assegurando os direitos fundamentais dos usuários na vastidão do ambiente digital.

Nota-se que existe a possibilidade de que uma plataforma seja bloqueada no Brasil, até mesmo porque isso já ocorreu –ainda que com contestadas interpretações legais sobre isso. A grande questão é que o contexto está ainda mais complexo: o tom de desafio às normas brasileiras e as encruzilhadas jurídicas têm aumentado nos últimos anos, como temos visto diuturnamente nas redes sociais.

Assim, apesar da lei, da jurisprudência e das decisões judiciais, corre-se o risco de que, em breve, essas últimas não possam ser efetivadas por causa de determinados atores envolvidos estarem mais distantes fisicamente do território nacional, ou porque detêm poder econômico extraordinário, ou ainda porque seus negócios globais são bastante variados, como é o caso do Elon Musk, que reúne todas essas características.

Se isso acontecer, o que fará o STF? O que fará o Poder Executivo? O Legislativo se movimentará? E nossa diplomacia, em que medida pode auxiliar?

Muitos agentes podem agir e mudar esse cenário, mas suas movimentações precisam ser estratégicas e pontuais. E, se nada for feito, possivelmente veremos mais contendas políticas econômicas e jurídicas se entrelaçando, colocando em xeque nossas instituições, suas autoridades e a respeitabilidade do país no cenário internacional. Estamos dispostos a isso?

Fonte: Poder360

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