O enorme estrondo veio seguido do breu completo e gritos de dor. Dezenas de militares dormiam no interior do navio auxiliar Vital de Oliveira no turno de descanso. Faltavam poucos minutos para a meia-noite de 19 de julho de 1944, quando o torpedo de um submarino da Alemanha nazista atingiu a embarcação da Marinha do Brasil e rasgou a popa. Com o impacto, o medo se instalou. Uma carga de madeira tombou, bloqueando passagens que seriam uma rota de fuga. Sem saída, os que estavam nesses compartimentos foram arrastados para o fundo das águas geladas do litoral do Norte Fluminense.
Quem conseguiu escapar do navio avariado procurava se afastar do casco que rangia enquanto ainda afundava. Mas o empuxo era brutal, criando fortes redemoinhos. Em cerca de três minutos, o Vital havia naufragado. Na escuridão, um breve alívio surge em meio ao desespero: a mesma madeira que condenara parte da tripulação à morte voltou à tona, transformando-se em tábua de salvação para outros. Começava ali a angústia pela espera do resgate, que se misturava ao temor de que o submarino voltasse para metralhar os sobreviventes.
Oitenta anos atrás, a cerca de 45 quilômetros ao largo do Farol de São Tomé, entre Campos e Quissamã, ocorreu um dos mais dramáticos capítulos da passagem brasileira pela Segunda Guerra Mundial: cem homens foram mortos no ataque do U-861, da Kriegsmarine, a frota alemã. Único navio militar brasileiro posto a pique pelo inimigo no conflito, o Vital de Oliveira repousa a 55 metros de profundidade e foi localizado praticamente ao acaso por mergulhadores que viviam da captura de peixes ornamentais. Apesar de se tratar de um autêntico túmulo de guerra, ele corre o risco de ser apagado da História pelo desgaste no ambiente marinho. Apesar de já informada sobre a localização do navio, a Marinha não tem planos para recuperar os destroços e sustenta que a confirmação das coordenadas do Vital, “apesar de sua importância histórica, pode enfrentar vários desafios”. Em nota, informa ainda que “atualmente não realiza pesquisa de localização de sítios arqueológicos de naufrágios”.
Tem nome complicado um dos personagens que acabaram ajudando a localizar os escombros: Prognathodes guyanensis. Trata-se do peixe-borboleta-de-fundo, espécie que enfeita aquários e é o sonho de muitos mergulhadores. A descoberta extraordinária de que havia uma embarcação nas escuras águas da região veio quando dois desses profissionais atenderam ao pedido de ajuda de um pescador, cuja rede estava presa ao fundo. Ao mergulhar, os irmãos José Luiz e Everaldo Pompermayer Meriguete perceberam que não era uma rocha, mas sim pedaços de um naufrágio que seguravam a rede.
Mas ainda demorou até que o “efeito borboleta” se manifestasse de vez para a identificação do Vital. Em busca de mais informações sobre o achado, os Meriguete pediram o apoio de Domingos Afonso Jório, experiente mergulhador de grandes profundidades. Com a orientação de um cabo-guia preso a um objeto no fundo, Afonso foi até o local e voltou extasiado com o que havia visto.
— Vocês sabem onde amarraram o cabo? Não é uma pistola d’água, é um canhão!!!
Cruzando aquela posição com dados históricos, foi possível fazer o reconhecimento. Os registros para a produção de um documentário geraram imagens impressionantes — entre elas, aquela que parece ser a do sapato de um tripulante, além de muita munição e objetos do cotidiano dos militares.
Apesar das evidências apontadas desde a década passada, a descoberta segue sem chancela definitiva das autoridades. A Infraestrutura de Dados Espaciais (Inde), que reúne indicadores geoespaciais, indica em seu site a posição dos escombros do Vital de Oliveira, mas as coordenadas aparecem como “reportadas”, embora ainda não “confirmadas”. A nomenclatura “reportadas” é usada “quando as fontes informam as coordenadas, porém, ainda não há confirmação da localização”. Até o momento, segundo a Marinha, foram catalogados 1.009 naufrágios, cujas posições geográficas (latitude e longitude) estão dentro de diferentes níveis de precisão.
Enquanto não há uma iniciativa oficial para estudo, a deterioração avança de forma acelerada. Afonso relata que, em mergulho mais recente, o canhão usado como orientação em sua primeira descida já havia tombado. Com o passar do tempo, o desgaste dos materiais está mais evidente.
— O Vital está assentado no fundo de maneira perfeita, estável, como se tivesse sido colocado ali com cuidado — conta Afonso.
Em nota ao GLOBO, a Marinha informou que “em conjunto com instituições acadêmicas e de pesquisa, continua a trabalhar para proteger o patrimônio cultural subaquático do país, garantindo que essas ‘cápsulas do tempo’ (os naufrágios) sejam estudados e, quando possível, preservados para futuras gerações”. No entanto, pelo relato dos mergulhadores, há grande chance de que brevemente exista muito pouco a ser protegido, caso não seja feito um esforço maior para preservar os destroços, recuperar objetos e até encontrar restos mortais.
Estudioso da história naval brasileira e autor de “Flores ao Mar”, livro que trata de naufrágios ocorridos no período do conflito mundial, o professor Raul Coelho Barreto Neto explica que o Vital de Oliveira não foi fabricado para ser um navio de guerra. Por isso, foi ao fundo tão rapidamente, já que não tinha a estrutura de uma embarcação para combates no mar. Ele vem da família dos “itas”, como na composição de Dorival Caymmi “Peguei um Ita no Norte”. Com o nome de Itaúba, fez transporte de cargas e passageiros, mas, por conta de dívidas, passou à União e foi incorporado à Marinha. Ganhou o nome do patrono da hidrografia no Brasil e partiu para novas missões.
— Ele era um mercante adaptado. Tinha inclusive dois canhões 47 mm, guarnecidos, mas não era originalmente navio de guerra e não tinha couraça. O que explica em boa medida o estrago feito por um único torpedo — afirma Barreto Neto. Na guerra, os navios auxiliares, como o Vital de Oliveira, tinham um papel estratégico na logística, garantindo o suprimento de bases militares, ilhas oceânicas e outras embarcações da Marinha.
Se a versatilidade era a marca desses navios, a bravura era o que distinguia suas tripulações. Desprovido de equipamentos como radar e sonar, com armamento precário e movido a carvão, o Vital era um dos que iam para o alto-mar contando mais com a coragem de seus homens do que com a tecnologia de guerra. Pior: a repetida e acelerada faina naval para transporte de cargas, munições e tropas fazia dos navios auxiliares presas apetitosas para qualquer U-boot da frota nazista. Como não podiam esperar a formação dos comboios com escolta, boa parte das vezes navegavam sem apoio. Mas, naquela que acabou sendo a sua última missão, o Vital tinha companhia. Ou, ao menos, deveria ter.
No trecho onde aconteceria o ataque, o caça-submarinos Javari estava encarregado da proteção ao navio auxiliar, cuja missão havia começado em Natal, trazendo militares enfermos para o Rio. O Vital fez escalas também em Cabedelo, Recife, Salvador e, finalmente, Vitória, onde recebeu a carga com tábuas. Na ocasião, o Javari ia à frente, abrindo as águas em direção à Baía de Guanabara. À noite, já haviam cruzado o Farol de São Tomé, mas não havia mais contato visual entre os navios. Quando o U-861 disparou, o Vital era um alvo solitário. Nunca se esclareceu por que motivo o Javari se afastou tanto.
A estimativa é de que 270 pessoas estavam a bordo, incluindo adolescentes que atuavam como grumete, função similar a aprendiz, e até uma criança. Uma tragédia que mal aparece nos livros escolares e que vem se desfazendo aos poucos, no ritmo da deterioração dos escombros no fundo do oceano.
Fonte: O Globo