Enquanto o governo federal contempla ser possível um papel de mediação na guerra em Gaza, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é alvo de críticas a cada nova declaração sobre o conflito. Na controvérsia mais recente, Lula equiparou as ações do Estado de Israel e do grupo terrorista Hamas no conflito, classificando ambas como “terrorismo” em um discurso feito na segunda-feira à noite na recepção dos brasileiros repatriados de Gaza.
— Nunca vi uma violência tão brutal, tão desumana contra inocentes. Se o Hamas cometeu um ato de terrorismo, o Estado de Israel também está cometendo um ato de terrorismo — disse Lula após a chegada do grupo de repatriados na Base Aérea de Brasília.
Nesta terça-feira, Lula voltou a usar o termo ao se referir às ações de Israel em sua ofensiva contra grupo no enclave.
— É por isso que eu disse ontem (segunda-feira) que a atitude de Israel em relação às crianças e às mulheres é igual ao terrorismo. Não tem como dizer outra coisa. — afirmou em sua live semanal. — Se sei que está cheio de criança naquele lugar, pode ter um monstro lá dentro que não posso matar as crianças porque quero matar os monstros. Tenho de matar o monstro sem matar as crianças. É simples assim.
Em mais de uma ocasião, o mandatário brasileiro criticou a resposta de Israel ao ataque terrorista do Hamas, que deixou 1,2 mil mortos e mais de 200 reféns em 7 de outubro — o pior ataque em solo israelense desde a formação do Estado judeu, em 1948. Em 39 dias de guerra, a ofensiva de Israel em Gaza já matou mais de 11 mil pessoas, em sua maioria civis, segundo as autoridades vinculadas ao Hamas, que ainda mantém um controle parcial do território.
O governo do premier israelense, Benjamin Netanyahu, acusa o grupo terrorista de possuir infraestruturas sob instalações civis, como hospitais e áreas residenciais, usando a população como escudo. No entanto, vem crescendo os pedidos na comunidade internacional para que Israel adote medidas para a proteção dos civis, incluindo pausas humanitárias.
Com um tom menos neutro que o do Itamaraty, as declarações de Lula têm provocado rechaço da comunidade judaica brasileira desde o início da guerra, quando foi questionado pela “demora” para chamar a ação do Hamas e o grupo em si de terroristas. Na segunda-feira, após Lula afirmar que Israel está “matando inocentes sem nenhum critério” em um discurso no Planalto, surgiu uma série de críticas.
“Além de equivocadas e injustas, falas como essa do presidente da República são também perigosas. Estimulam entre seus muitos seguidores uma visão distorcida e radicalizada do conflito”, disse a Confederação Israelita do Brasil (Conib) em nota.
Embora expressões como “terrorismo”, “crime de guerra” e “genocídio” tenham sido fortemente incorporadas ao debate público com a eclosão da guerra, as definições adotadas pelo direito internacional — e pela própria legislação brasileira — vão além da retórica do presidente brasileiro.
O próprio conceito de terrorismo é elástico e não existe para o Direito Internacional Humanitário (DIH), ainda que ele proíba “a maioria dos atos cometidos em conflitos armados que normalmente se consideram como ‘terroristas'”, explica o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) em relatório.
No DIH, “descrever os atos de violência deliberados contra civis ou contra bens de caráter civil como ‘terroristas’ não tem nenhum significado jurídico, pois esses atos já constituem crimes de guerra”, destaca o documento. Cabe às legislações de cada país definirem quais atos configuram terrorismo dentro de seu território.
No Brasil, a Lei de Terrorismo foi sancionada em março de 2016 no governo da presidenta Dilma Rousseff — na esteira da crise política que levou milhares de manifestantes às ruas e às vistas dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, em agosto daquele ano. Na época, a legislação foi fortemente criticada por movimentos sociais e grupos da sociedade civil pois foi considerada uma tentativa de calar a onda de protestos que havia tomado o país desde junho de 2013.
Segundo a lei brasileira, terrorismo consiste em atos motivados por “xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião” cometidos com a finalidade de “provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”. Neste ano, a legislação esteve no centro do debate jurídico sobre o julgamento dos réus dos atos golpistas contra as sedes dos Três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro.
De acordo com o Estatuto de Roma, documento no qual se baseia o Tribunal Penal Internacional (TPI) — corte com sede em Haia e a única responsável por julgar crimes de guerra, lesa-Humanidade, de agressão e genocídio —, são crimes de guerra as violações que ocorrem durante confrontos ativos em desrespeito à Convenção de Genebra . Elas incluem sequestro de reféns; ataques intencionais contra civis e instalações como hospitais, escolas, templos religiosos e monumentos históricos; uso de civis para autodefesa em operações militares; e restrição ao acesso a suprimentos essenciais à sobrevivência.
— Dirigir intencionalmente ataques contra a população civil é crime de guerra e a utilização de civis como escudos humanos também — analisa Sylvia Steiner, ex-juíza do TPI e única brasileira a já ter integrado a corte. — Essa reação do governo [israelense] de bombardear prédios civis e cercar a cidade de Gaza, interrompendo o fornecimento de suprimentos, também faz parte das condutas proibidas pelo direito internacional humanitário. Não importa que seja por retaliação, tem que ser proporcional.
Para o professor de direito internacional Ricardo Victalino, um dos maiores desafios para o cumprimento das normas internacionais na guerra é a formação da alta cúpula militar:
— Muitos estrategistas militares foram formados no período anterior a 1998, quando o TPI não atuava, então eles não estão preparados para responder conforme o direito internacional — analisa.
De acordo com o professor, mesmo Israel não reconhecendo o TPI, caso sejam comprovados crimes da sua parte, ele poderia ser levado a julgamento. Como o órgão não pune Estados, mas pessoas, seriam responsabilizados os mandantes das ações, ou seja, o alto-comando militar e a cúpula do governo israelense, incluindo Netanyahu. A punição, porém, não se estenderia aos soldados na linha de frente, explica Victalino.
Um desafio maior seria punir o Hamas, já que a organização não é aceita internacionalmente como representante dos palestinos como a Autoridade Nacional Palestina (ANP), que comanda a Cisjordânia. Também por isso, a ANP não poderia ser considerada culpada por qualquer ação orquestrada pelos terroristas que controlam a Faixa de Gaza.
Fonte: O Globo