O carpinteiro Ezequiel Barbosa Nunes calcula que conseguiu resgatar mais de 100 pessoas desde 4 de maio, quando as águas dos rios dos Sinos e Jacuí avançaram como um tsunami sobre as ruas de Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Naquele dia, ele mesmo precisou ser socorrido por um amigo.
— Estava com a água no pescoço, segurando a minha filha de 5 meses, e a minha mulher, que não sabe nadar, pendurada nas minhas costas — contou.
Na mesma tarde, após colocar a sua família na parte mais alta do município, ele voltou à região alagada, se reuniu com outros 11 vizinhos, arranjou um barco com amigos pescadores, e, desde então, faz viagens diárias de resgate. Nunes afirma que tem tomado remédios para conseguir dormir e ainda não consegue chegar perto da sua casa alagada.
— Nós estamos exaustos. Passo o dia tomando energético e à noite só consigo dormir com remédio. Foi uma médica voluntária que veio aqui e me receitou — afirmou ele. — Eu não fui na minha casa ainda, porque eu estou com medo de ter um bloqueio por ter perdido tudo e não conseguir mais ajudar.
Relatos parecidos com o de Nunes são colhidos diariamente por psicólogos que têm trabalhado como voluntários nos abrigos espalhados pela Região Metropolitana de Porto Alegre.
— Além dos desabrigados, estamos fazendo as escutas de socorristas e voluntários. Está todo mundo sobrecarregado. Um relato comum é que as pessoas têm dificuldade de descansar em casa. Não conseguem desligar. Ficam pensando: ‘Eu estou comendo uma pizza em casa, enquanto tem gente sem nada’. Isso tem um impacto negativo na saúde mental das pessoas — afirmou Vinicius Tonnolier, coordenador do curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). O campus da faculdade virou um abrigo temporário para mais de oito mil pessoas.
O subcomandante do 8º Batalhão do Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul, o major Daniel Borges Moreno, diz que perdeu as contas de quantas pessoas ele e a sua equipe resgataram em Porto Alegre
— Certamente, milhares. Ele afirmou que a corporação passou a fornecer atendimento psicológico para os agentes e a montar uma escala de horários para evitar exaustão física.
Segundo ele, os socorristas que necessitam de mais atenção são aqueles que também perderam os seus bens durante as enchentes.
— Ele socorre os outros e ao mesmo tempo precisa ser socorrido. Seis por cento do meu batalhão estão nessa situação. Montamos uma rede de apoio para tratar essa questão — afirmou o major.
Enquanto boa parte dos resgates é feita por um exército de voluntários civis, o Corpo de Bombeiros tem se ocupado das missões mais complexas, que envolvem o uso de helicóptero e o içamento por cabo. Foi o caso de uma idosa cadeirante que precisou ser erguida por meio de cordas da sacada do seu apartamento, em São Leopoldo (RS), na última segunda-feira.
— Somos os únicos que têm feito ações de resgate durante a noite — disse o major.
Além do estado constante de pressão, os socorristas têm colocado a saúde em risco ao ter contato com as águas sujas das ruas alagadas. O tenente do Exército Felipe Nimitt afirmou que chegou a engolir água durante o resgate de pessoas que estavam se afogando nos primeiros dias das enchentes.
— Cheguei a tomar um golão quando puxei a pessoa para cima — disse ele.
Assim que chegam aos pontos de resgate, os socorristas civis e militares costumam receber uma dose de vacina para tétano e dois comprimidos de antibiótico para prevenir a leptospirose e outras doenças infecciosas.
Apesar do cansaço físico, o trabalho de Nunes ainda está longe de acabar. O nível dos rios que margeiam a Região Metropolitana voltou a subir na segunda-feira e o resgate precisou ser intensificado para retirar moradores que voltaram às suas casas ou que preferiram permanecer nelas com medo de assaltos.
Nunes conta que resgatou ontem um casal de idosos com um cachorro.
— Eu disse à senhora que aquele era o momento de sair, porque poderia não ter mais barco depois e a água estava subindo — disse ele, com o sentimento de “missão cumprida”.
Fonte: O Globo