Em 1937, enquanto seu avião sobrevoava os picos escarpados da Cordilheira do Alasca, o explorador Bradford Washburn olhou para baixo e teve um pensamento brilhante. Pelas encostas ao sul de Denali e Mount Silverthrone estavam as neves acumuladas de milhares de invernos, compactadas sob seu próprio peso em rios colossais de gelo que enchiam os vales por quilômetros em todas as direções. Washburn, então, se convenceu de que sob o gelo havia um segredo: um corredor profundo. Mais profundo, talvez, do que qualquer outro desfiladeiro no continente ou até mesmo no planeta.
Em um ponto específico na natureza selvagem branca, Washburn notou que toda essa massa glacial estava se espremendo por um corredor com paredes de granito de apenas 1,6 km de largura.
Quase 90 anos depois, uma equipe de cientistas partiu para as montanhas varridas pelo vento para medir a geleira com motos de neve e radar de penetração de gelo. Não foi fácil: o Grande Norte não entrega seus mistérios facilmente. Os pesquisadores quase pensaram que não tinham encontrado algo de interessante.
Agora, graças a uma análise inteligente e um pouco de sorte, eles apresentaram a evidência mais conclusiva até agora de que Washburn estava certo: que a área poderia ser o desfiladeiro mais profundo da América do Norte.
Mesmo para os padrões do Parque Nacional e Reserva Denali, onde paisagens imponentes encantam alpinistas há gerações, o desfiladeiro e a geleira que cativaram Washburn se destacam.
O gelo da geleira Ruth primeiro se reúne em um vasto campo cercado por imponentes cristas de granito, cujos nomes — Moose’s Tooth, Bear’s Tooth, Eye Tooth — dão uma ideia de sua verticalidade pura e afiada. A geleira, então, serpenteia por uma fenda, conhecida como Great Gorge, onde as paredes do penhasco, com mais de 1 km de altura, lembram o quanto do lugar permanece invisível e sob os pés.
“Você não só tem essa paisagem inacreditável acima de você, mas tem uma igualmente inacreditável enterrada no gelo abaixo”, disse Martin Truffer, um glaciologista da University of Alaska Fairbanks. “Isso é algo que eu nunca vou superar.”
À medida que o planeta esquenta, a geleira Ruth diminui a um ritmo de mais de 0,91 metros por ano, de acordo com os cientistas. Para o geofísico Chris Larsen, no Alasca, algumas geleiras estão mudando tão rapidamente que ele não consegue mais se lembrar de como eram há 10 anos. “É pior do que ver uma criança crescer”, disse.
A primeira vez que cientistas tentaram testar a intuição de Washburn e encontrar o fundo do Grande Desfiladeiro foi em 1991. Eles foram rapidamente frustrados: o desfiladeiro é tão profundo e estreito que os ecos do radar acabaram ricocheteando nas laterais, enviando de volta uma confusão de ruídos.
Um ano depois, os pesquisadores tentaram novamente, dessa vez com uma abordagem mais combustível. Larsen, recém-saído da faculdade, era um técnico na expedição. Os cientistas perfuraram buracos no gelo, encheram-nos com explosivos e desencadearam pequenas explosões. Eles usaram instrumentos sísmicos para medir as ondas acústicas resultantes.
Os cientistas, então, conseguiram obter algumas leituras do formato e da profundidade do desfiladeiro, que estimaram ser de quase 3 km. Isso é mais profundo do que o Grand Canyon e o Hells Canyon, o desfiladeiro mais profundo esculpido por rios da América do Norte, que fica na fronteira entre Idaho e Oregon.
No entanto, com o tempo, os cientistas começaram a questionar as descobertas, especialmente porque as imagens de satélite permitiram que os pesquisadores mapeassem as geleiras digitalmente. Em 2019, Jack Holt, um geólogo da Universidade do Arizona, quis tentar novamente medir a geleira Ruth do solo.
Holt começou a organizar uma expedição com o apoio de Robert Sheldon, um empresário cujo pai, Don, tinha sido um famoso piloto de mato no Alasca. Décadas antes, Don Sheldon tinha voado com Bradford Washburn para mapear Denali, então conhecido como Monte McKinley, e os picos ao redor. O fascínio de Washburn pelo Great Gorge também cativou Robert Sheldon.
“Vamos fazer isso de uma vez por todas”, Sheldon se lembra de ter pensado, para honrar “o legado que meu pai e Brad deixaram para trás”.
Na primavera de 2022, Holt pousou nas montanhas com Truffer e dois outros pesquisadores, Brandon Tober e Michael Christoffersen. Eles trouxeram consigo um equipamento de radar especialmente projetado e, por cerca de uma semana, eles o rebocaram atrás de um snowmobile pela extensão nevada da geleira, para frente e para trás, enquanto ele enviava mil ondas de rádio por segundo para o gelo abaixo.
No início, os cientistas ficaram satisfeitos com os ecos retornando. “Só de olhar os dados conforme os adquirimos, pensei que isso estava realmente funcionando bem”, disse Truffer. Mais tarde, porém, quando examinaram os números mais de perto, perceberam que tinham um problema.
Suas sondagens da geleira acima do Great Gorge renderam boas medições de sua espessura ali. Mas seus dados de dentro do desfiladeiro continham muita desordem barulhenta, o mesmo problema que havia frustrado a expedição de 1991.
Então, no final do ano passado, um avanço: os cientistas perceberam que uma missão da NASA havia feito medições aéreas do gelo mais abaixo na geleira Ruth, abaixo de onde ele deságua do desfiladeiro. Ao combinar esses dados com suas leituras de mais acima na geleira e aplicar o que sabiam sobre a rapidez com que a geleira estava fluindo, os pesquisadores puderam inferir as dimensões aproximadas do gelo e, portanto, do desfiladeiro, no meio.
A estimativa final da profundidade do Great Gorge, do cume do Moose’s Tooth até o leito rochoso: cerca de 2,46 km. O Hells Canyon, em comparação, mergulha 2,41 km. (Vários vales no Himalaia e nos Andes são ainda mais profundos.) As descobertas da equipe foram publicadas no Journal of Glaciology na quarta-feira.
O Great Gorge dificilmente é o único vale glacial com geometria complicada, segundo Tober, que agora é pesquisador de pós-doutorado na Carnegie Mellon University. Os métodos que eles usaram para Ruth Glacier podem ajudar os cientistas a entender melhor muitas outras geleiras não mapeadas. “Por todo o Alasca, há muitos lugares onde ainda estamos carentes dessas medições”, analisa.
Sheldon adoraria ter mais medições sobre um lugar em particular. Por enquanto, tudo o que ele tem é um “pressentimento”. Um pensamento que Bradford Washburn passou adiante antes de morrer, em 2007.
“Brad me disse isso misteriosamente, pois ele estava ficando muito mais velho”, disse Sheldon.
Antes que a geleira Ruth deságua no Great Gorge, sua bifurcação ocidental serpenteia por um vale estreito diferente, amassando e rachando contra algumas torres de granito ainda mais altas. Lá, sob o gelo em movimento, “tenho a sensação de que pode ser mais profundo”, conclui Sheldon.
Fonte: O Globo