O rapto de crianças indígenas por cientistas alemães em expedição pelo Brasil no século 19

Colagem com imagem da criança indígena Miranha em exposição em Munique  -  (crédito: Divulgação/Felix Ehlers)
Colagem com imagem da criança indígena Miranha em exposição em Munique - (crédito: Divulgação/Felix Ehlers)

Os cientistas alemães Johann Baptist von Spix (1781–1826) e Carl Friedrich Philipp von Martius (1794–1868) são conhecidos por uma famosa expedição que fizeram ao Brasil entre 1817 e 1820, levando do país sul-americano para a Europa milhares de plantas e animais exóticos que seriam posteriormente estudados e catalogados.

Mas uma parte talvez menos conhecida dessa história é que, entre esses milhares de itens transportados para a Europa, estavam também duas crianças indígenas, Juri e Miranha — como ficaram conhecidos em referência ao nome de suas famílias indígenas de origem, da região amazônica.

Eles eram de etnias inimigas, não falavam a mesma língua, mas ficaram juntos na Alemanha. Chegaram primeiro a Lisboa e depois seguiram para Munique.

Entre junho de 1821 e maio de 1822, Juri e Miranha morreram na Alemanha com cerca de 14 anos, após adoecerem por causas pouco claras.

Dois séculos após serem louvadas por suas conquistas científicas, somente nos últimos anos esse lado mais problemático da expedição, o rapto das crianças, tem ganhado os holofotes.

Esse outro lado da história de Spix e Martius foi explorado pela exposição Travelling Back: A Change of Perspective on an expedition from Munich to Brazil in the 19th century [A viagem de volta: Uma mudança de perspectiva sobre a expedição de Munique para o Brasil no século 19], que ficou em cartaz até 5 de abril no instituto Zentralinstitut für Kunstgeschichte, em Munique, na Alemanha.

Com curadoria da historiadora brasileira Sabrina Moura, a mostra reuniu obras de artistas contemporâneos que revisitam criticamente o episódio, além de um material diverso, como jornais da época revelando um grande interesse público pelas crianças.

No Brasil, o rapto de Juri e Miranha despertou maior interesse após o lançamento do livro O Som do Rugido da Onça (2021), da escritora e historiadora brasileira Micheliny Verunschk. Vencedor do Prêmio Jabuti em 2022, o romance narra a história especialmente a partir do ponto de vista de Iñe-e, nome que Miranha ganha na trama.

Trechos da publicação foram traduzidos para o alemão e incluídos na exposição em Munique. A programação da mostra incluiu também uma conferência, realizada em fevereiro, com a participação de Verunschk.

Na conferência, comentários na plateia deixavam claro como o episódio ainda provocava reações confrontantes.

Houve quem tentasse relativizar, afirmando que também havia rapto de crianças entre povos indígenas inimigos. Ou, ainda, quem justificasse que elas foram trazidas com objetivos científicos.

“Eu achei que essa história já tivesse sido mais discutida e digerida pela sociedade da Baviera [Estado alemão onde fica Munique]. Mas não, de fato é algo ainda permeado de ausências e bastante sensível”, diz Moura, doutora em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que hoje vive em Munique, onde realiza o pós-doutorado no centro de pesquisas Käte Hamburger Research Center global dis:connect.

“Enquanto a gente vê a relevância desses cientistas em Munique, há uma grande ausência sobre outros aspectos dessa prática científica.”

De acordo com a curadora, o debate sobre esse outro lado da expedição de Spix e Martius tem sido levantado por instituições e cientistas mais ligados aos debates pós-coloniais (abordagem de estudo que olha criticamente para o passado e para as consequências atuais do colonialismo e do imperialismo), mas “grandes instituições da Bavária pouco falam sobre essa história”.

O legado da viagem de Spix e Martius ao Brasil para a ciência já foi devidamente reconhecido, assim como os louros dos cientistas foram colhidos o suficiente no antigo reino da Baviera — que existiu de 1806 até 1918, quando, após a Revolução Alemã, foi sucedido pelo então Estado Livre da Baviera.

Três anos após voltarem da expedição na qual percorreram 14 mil quilômetros do território brasileiro, coletando e catalogando mais de 22 mil espécies de plantas, o botânico Martius e o zoólogo Spix foram agraciados com o título de nobreza, incorporando o “von” antes de seus sobrenomes.

Foi também em 1823 que lançaram o primeiro volume do livro Reise in Brasilien (Viagem pelo Brasil, na versão em Português), com textos onde mesclavam relatos de uma visão romântica da natureza tropical com observações atestando a superioridade europeia em relação aos povos nativos.

Hoje, grande parte dos itens levados por Spix e Martius integra uma coleção do museu etnológico de Munique.

O historiador Markus Wesche, autor do livro Zwei Bainer in Brasilien (Dois Bávaros no Brasil, em tradução livre), foi uma das vozes locais que criticou a maneira como o assunto foi abordado na exposição.

Segundo ele, o foco na história das crianças levadas por Spix e Martius é problemático pois ignora que houve “um grande número de indígenas levados para a Europa sobre os quais praticamente nada sabemos”, escreveu à BBC News Brasil por e-mail.

Ele questiona também a denominação de sequestro, afirmando que esse “é um termo do Direito Penal [atual] e não descreve adequadamente o caso.”

O historiador relata que Martius “sentiu a morte do menino como um ‘veredito pesado'”, citando as palavras do cientista.

“Os feitos do jovem Martius [o botânico tinha 23 anos quando deixou a Europa] foram motivados pela sua profunda crença como cristão e cientista de que desvendar os segredos da natureza e a educação levaria ao enobrecimento humano”, defende Wesche.

Micheliny Verunschk, cujo romance também revisita trechos dos diários de Martius e Spix, foi enfática ao responder aos argumentos de Wesche na conferência.

“Causa espanto que, dentre as milhares de anotações feitas minuciosamente pelos cientistas a respeito da expedição e seus resultados, apenas as informações sobre as crianças tenham sido reescritas diversas vezes. As rasuras dizem que von Martius e Spix sabiam muito bem o que estavam fazendo”, afirmou a autora à BBC News Brasil, depois do evento.

Quando menciona trechos reescritos, Verunschk está se referindo a relatos contraditórios e rasuras nos escritos de Martius já observados por pesquisadores.

Sobre o uso do termo “sequestro”, adotado também em diversos artigos acadêmicos, a escritora justifica sua pertinência.

“O tráfico infantil indígena no contexto colonial ainda é pouquíssimo estudado, mas todo tráfico, sabemos, é antecedido por atos de violência: a separação de alguém de sua família, terra, cultura. Talvez possamos, em certa medida, chamar a esse ato violento de sequestro, ainda mais quando temos informações tão díspares sobre o que de fato aconteceu com essas crianças.”

Até hoje não se sabe como se chamavam originalmente Johannes e Isabella, nomes que as crianças ganharam após serem batizadas na Alemanha.

Em 1824, a rainha Carolina da Baviera encomendou ao artista Johann Baptist Stiglmaier uma placa mortuária para adornar o túmulo das crianças indígenas no antigo cemitério sul de Munique, levada depois para o Stadtmuseum, um museu em Munique.

A placa mortuária foi emprestada pelo museu e foi um dos destaques da exposição Travelling Back: A Change of Perspective on an expedition from Munich to Brazil in the 19th century.

A mostra também teve obras dos artistas visuais Frauke Zabel, Yolanda Gutiérrez, Igor Vidor, Elaine Pessoa e Gê Viana.

É dessa última uma colagem digital inspirada em uma litografia presente no livro Reise in Brasilien, com um retrato de Miranha — a qual faz parte da Coleção Brasiliana do Itaú Cultural, em São Paulo (SP).

Na versão de Gê Viana, a menina é adornada com penas, folhas e um halo azul justaposto a facões — uma reinterpretação da violência colonial.

Fonte: Correio Braziliense

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