A democracia americana foi durante muito tempo um modelo de solidez. Não é mais. As regras da economia americana sempre foram vistas como símbolo liberal. Não são mais. O país sempre cultuou o “sonho americano”, um lugar onde um imigrante, um pobre, poderia construir, com seu trabalho, a prosperidade. Não é mais bem assim. Está às portas da Casa Branca um homem que não reconheceu a derrota eleitoral, mandou seus seguidores invadirem o Congresso, promete fechar a economia, se faz acompanhar de um empresário que distribui dinheiro a eleitores, ameaça cassar concessões de televisão e promete deportação em massa de imigrantes. Esse pesadelo pode se tornar realidade a partir de terça-feira.
As regras eleitorais pensadas pelos pais fundadores sempre foram confusas, dando mais poder ao voto indireto, mas serviam para evitar aventureiros. Isso acabou em 2016. Donald Trump capturou o Partido Republicano e, mesmo depois da invasão do Capitólio, ele mostrou que era dono do partido e eliminou os adversários. Segundo o The New York Times, há mais probabilidade de Trump, se eleito, ter também o controle das duas Casas do Congresso, do que Kamala Harris realizar o mesmo feito.
É cada vez menos verdade o exemplo que em parte sustentou a tese que ganhou o Nobel de Economia este ano. A teoria que premiou Daron Acemoglu, James Robinson e Simon Johnson é poderosa e mostra a virtude da democracia e das regras estáveis de mercado. O problema foi o que houve com os casos apresentados como virtuosos. O livro “Por que as nações fracassam”, de Acemoglu e Robinson, que popularizou a tese, começa comparando Nogales, no estado mexicano de Sonora, e Nogales no Arizona. Uma mesma cidade, dividida ao meio. Uma próspera, outra subdesenvolvida. A explicação da diferença estaria nas instituições.
No setor privado, o mesmo contraste. De um lado Bill Gates, da Microsoft, que enfrentou a Comissão Federal de Comércio por estar abusando do poder de monopólio do sistema operacional dos PCs e teve que fechar um acordo com o Departamento de Justiça, em 2001 que, segundo os autores, “cortou suas asas”. De outro, Carlos Slim, que fez sua fortuna por relações promíscuas com o Estado mexicano. “Slim conquistou fortuna em grande parte por suas conexões políticas”, escreveram Acemoglu e Robinson. “As instituições econômicas que fizeram de Carlos Slim quem ele é são muito diferentes das instituições dos Estados Unidos.” O que dizer agora diante dos absurdos feitos nessa campanha por Elon Musk, empresário com contratos bilionários com o governo? O próprio Trump ameaça favorecer ou discriminar empresas por critérios ideológicos.
“A democracia americana está sob ataque” disse, num programa que fiz na GloboNews, o cientista politico Paulo Velasco, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ. Ele tem esperanças de que a democracia americana resista, porque tem lastro histórico. Mas Velasco mesmo lembra os pontos de fragilidade como a maioria conservadora na Suprema Corte ameaçando liberdades históricas. O economista Márcio Garcia, da PUC do Rio, disse que os americanos sempre confiaram no arcabouço institucional deles, nos freios e contrapesos.
— Mas agora se vê Trump tensionando isso ao máximo. Essa relação com Musk, dependendo de como vier a se desenvolver num eventual governo Trump, seria a melhor prova disso. O que eles estão fazendo, de distribuir dinheiro, faz a gente entrar num território desconhecido. Espero que os freios e contrapesos funcionem – diz Márcio.
E a economia pode ajudar a candidata democrata Kamala Harris? A economia está crescendo, com desemprego baixo, inflação e juros em queda. Mas Márcio Garcia diz que, como os preços haviam subido muito, a sensação de “carestia” permanece. A revista The Economist informou que seu modelo de previsão identificou alguns indicadores que podem contribuir para Kamala. “Renda real, consumo real, desemprego, inflação e sentimento do consumidor. Os dados recentes todos são positivos para Harris.”
A economia já foi mais decisiva em eleições. No tempo atual, das manipulações e das mentiras é mais difícil. O fato é que a democracia dos Estados Unidos entra na semana que vem em profunda incerteza, e pode nos levar a esse território desconhecido, de que falou Garcia. Num eventual segundo mandato, Trump tende a dobrar a aposta. O risco é de o mundo ver um autocrata na América.
Fonte: O Globo