‘O mais preocupante na ascensão da extrema-direita é o apetite das pessoas por esse autoritarismo intolerante, racista, sexista, xenófobo’, diz ex-ministra francesa
Desembarca neste domingo no Rio, a ex-ministra da Justiça francesa, Christiane Taubira, que dá nome a lei que reconhece o tráfico de pessoas e a escravidão como crime contra a humanidade e que é uma das responsáveis pela legislação que legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo na França. Com uma carreira voltada à promoção da igualdade de gênero, combate ao racismo e à homofobia, a ex-ministra esteve muitas vezes no Brasil nos anos de 1980, na Amazônia, para discutir assuntos ligados à educação e pesquisa. Dessa vez chega à cidade, às vésperas da reunião de cúpula do G20, para participar da Festa Literária das Periferias (Flup) que este ano discute as periferias nacionais e globais, abordando questões climáticas, raciais, étnicas e de gênero.
Economista, socióloga e especialista em gestão estratégica e diplomacia, Taubira assume este mês a Cátedra José Bonifácio da Universidade de São Paulo (USP), onde liderará o projeto de pesquisa: “Sociedades amazônicas, realidades diversas e plurais, um destino comum?”
– Minha ideia é que primeiro devemos ser capazes de descobrir que a Amazônia é plural – afirma.
Nessa entrevista exclusiva concedida ao blog por e-mail, Taubira que além de ministra foi deputada na França e no Parlamento Europeu, conta ver com preocupação o avanço da extrema-direita no mundo, o que considera ” um grande perigo para as liberdades e para a ideia de igualdade”.
Mulher negra, nascida na Guiana Francesa, Taubira diz que conheceu cedo a hostilidade e a violência do racismo e decidiu se tornar “invencível”
– Verifiquei meus ativos: uma mulher, uma mulher negra, uma pessoa de origem social baixa, vinda de uma sociedade cultural complexa do sul… Pensei: Uaaauuu, que vantagens fabulosas para começar uma vida de luta e sucesso!
Aos 72 anos, ela diz se sentir tão “fervorosa” quanto aos 20 anos, com uma vantagem: a experiência.
A senhora já esteve no Brasil antes, como é agora essa vinda para a Flup o que está na sua agenda durante seu tempo no Brasil?
Na década de 1980, vim frequentemente ao Brasil, principalmente aos estados do norte da Amazônia, para tratar de assuntos ligados à educação, à pesquisa e à cooperação na área da pesca, em particular. Depois, na década de 1990, eleita deputada, estabeleci mais relações institucionais com as autoridades do estado do Amapá e participei de diversos eventos, inclusive de um encontro de parteiras de todas as Américas. Tendo me tornado ministra da Justiça da França, enviei um magistrado a Brasília a quem encarreguei, além da cooperação judicial, de transmitir os arquivos da Guiana sobre pesca e mineração ilegais. E fui para Brasília para conhecer as autoridades federais.
Agora, irei ao Rio de Janeiro a convite da Flup e estarei total e apaixonadamente envolvida nas atividades deste festival tão bonito, e generoso. Tenho muito respeito pelos seus organizadores e grande admiração pelo que as edições anteriores lhes permitiram alcançar.
Sua carreira tem sido focada na promoção da igualdade de gênero, combate ao racismo e à homofobia. Como a senhora vê a ascensão da extrema-direita no mundo e o risco de retrocesso em conquistas históricas, como a que você ajudou a garantir com a aprovação da “Lei Taubira”, que legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo?
O que há de mais preocupante na ascensão dos partidos de extrema-direita na Europa, no mundo, inclusive no Brasil, é o apetite das pessoas por esse autoritarismo intolerante, racista, sexista, xenófobo, que constitui um grande perigo para as liberdades e para a ideia de igualdade; e que torna a fraternidade problemática, particularmente através das suas obsessões anti-imigrantes.
Mas este aumento tem causas: o fracasso dos partidos políticos, o enfraquecimento dos ideais de progresso e solidariedade; a renúncia por parte dos governantes às proteções sociais e às alternativas à economia especulativa e brutal. Os governantes igualmente renunciaram ao poder face às potências financeiras, multinacionais e manipuladores de opinião que têm uma indústria de massa: redes sociais mal regulamentadas. Nesse sentido, a última batalha e vitória do Supremo Tribunal Federal do Brasil contra a rede X (antigo Twitter) é um grande avanço democrático. Ela não deve permanecer isolada. Certamente, devemos continuar a lutar para preservar e promover os direitos humanos nas democracias.
Mas a responsabilidade é mais ampla: devemos mais uma vez tornar imaginável e desejável uma sociedade de justiça social, de desenvolvimento cultural, de emancipação individual e de solidariedade. E esta luta cabe antes de tudo às forças de esquerda, em nome dos ideais de justiça, progresso e fraternidade.
É difícil de acreditar que ao ceder ao barulho de todos os rejeitados, reconquistaremos aqueles que se alimentam do seu próprio racismo e intolerância, ou outros que acreditam que o seu bem-estar e a sua felicidade dependem do infortúnio e da angústia das pessoas que não são como eles. O ressentimento é contagioso e invasivo, não é reconfortante nem restaurador.
Quanto aos líderes políticos que exploram essas frustrações, sem trazer justiça social, devemos combatê-los e não ceder a eles. Deve ser um confronto, porque se trata de concepções de mundo e de relações humanas.
Este mês a senhora assumirá a Cátedra José Bonifácio da Universidade de São Paulo. A senhora liderará o projeto de pesquisa: “Sociedades amazônicas, realidades diversas e plurais, um destino comum?”, como foi escolhido esse tema? Qual é o significado de ocupar esta cadeira?
Em inúmeras cúpulas internacionais ou multilaterais, a Floresta Amazônica, como um todo, é declarada como um lugar em grande perigo, chamado de pulmão verde da Terra. Normalmente, a Amazônia é vista mundialmente como uma paisagem, uma grande floresta perto de desaparecer. E, há muitos anos, declarações multilaterais prescrevem a proteção desta Amazônia sem resultados significativos até hoje.
Minha ideia é que primeiro devemos ser capazes de descobrir que a Amazônia é plural, um lugar onde povos de nove países diferentes vivem há milhares de anos, entre eles, os ditos “indígenas” e outros há séculos como povos remanescentes do sistema colonial escravista. Então, a Amazônia não é apenas uma paisagem. E se ela pertence ao mundo inteiro como um lugar, o mundo inteiro pode decidir sobre seu papel e futuro. Outros lugares também deveriam pertencer ao mundo inteiro. E isso, conceitualmente, introduz a relação assimétrica entre Norte e Sul.
Acredito que devemos proteger a Amazônia, mas tenho certeza de que há muito a aprender com esses povos cuja relação com a floresta tem sido tão longa. Essas pessoas usaram a floresta para agricultura, caça, pesca, mas também construíram grandes cidades. Então, se os cientistas podem dizer que a Amazônia é o pulmão verde da Terra, essa é a evidência de que a floresta não foi destruída por esses milhares e centenas de anos de vida humana. E na escala de legitimidade para deliberação coletiva, essas pessoas devem ser protagonistas.
Estou muito satisfeita e, além disso, muito orgulhosa de liderar esta prestigiosa Cátedra José Bonifácio. E espero que tenhamos a oportunidade de conversar mais sobre isso.
A senhora estará no Brasil quando os líderes das 20 maiores economias do mundo discutem as direções econômicas globais. Acredita que a Europa está fazendo o suficiente para lidar com as desigualdades sociais e econômicas? Quais áreas ainda precisam de mais atenção? Como vê o papel do Brasil nesse contexto?
O mundo está enfrentando muitos problemas dramáticos, não apenas guerras, mas também crescimento da pobreza e um colapso climático e da biodiversidade. Os governos, os líderes das maiores economias sabem disso claramente. Eles sabem mais do que você e eu. Eles têm todas as informações úteis. Então, se eles não agirem de forma efetiva, devemos questioná-los e intimá-los, e mostrar nossa impaciência. É um dever, devemos isso não só às gerações futuras, mas já às atuais.
O Brasil é um país grande e grandioso, com enormes desafios, devido tanto a sua geografia diversa, quanto a sua História, às vezes convulsiva. Quando suas autoridades oficiais falam de igualdade, cidadania real, igualdade de oportunidades, igualde de gênero, empoderamento das mulheres, justiça social, prosperidade compartilhada, etc., o Brasil provavelmente representará ou amplificará as vozes do Sul, o que significa falar em nome da maior parte da população mundial e da maior parte das terras do mundo. E essa é uma responsabilidade enorme.
O Brasil carrega a vergonha de ter sido o último país das Américas a abolir a escravidão. Quais papéis as políticas públicas de reparações históricas, como o reconhecimento da escravidão como um crime contra a humanidade pode ajudar na promoção da justiça social?
Essa questão é realmente central e crucial. Qualquer país que tenha se envolvido como praticante oficial do tráfico de escravos e da escravidão deve perceber que nem sua identidade coletiva nem sua coesão social podem escapar dessas marcas. Enfrentar este passado e suas consequências presentes remanescentes é uma questão de coragem e probidade. Cada país constrói lendas por si só, alguns as constroem de forma a beneficiar sua imagem e autoestima.
A história do tráfico de escravos e da escravidão é tão terrível, monstruosa e violenta que é muito difícil, para qualquer país, admitir francamente o que foi, quanto tempo durou e como ainda estrutura a sociedade. Mas qualquer país que tenha a coragem e a dignidade de enfrentar esta parte de seu passado se torna maior e mais forte. Reconhecer isto como um crime contra a humanidade, como a França fez por uma lei em 2001, é o primeiro passo significativo, a evidência do processo inicial de pensar a reparação.
Eu sei que o material mental e ontológico para fazer isso existe aqui. Li escritores, com especialidades diversas, entre eles Mário Theodoro, Conceição Evaristo, Marcos Queiroz, também Manuela Carneiro da Cunha, para citar apenas alguns.
Como mulher negra em um ambiente político predominantemente masculino e branco, quais foram os principais desafios que você enfrentou e que conselho você daria às mulheres que buscam entrar na política?
Quando comecei a enfrentar uma hostilidade muito brutal e frequente, às vezes violenta, incluindo ameaças físicas, percebi muito cedo o quão duro o mundo pode ser, e decidi ser INVENCÍVEL. Verifiquei meus ativos: uma mulher, uma mulher negra, uma pessoa de origem social baixa, vinda de uma sociedade cultural complexa do sul… Pensei: Uaaauuu, que vantagens fabulosas para começar uma vida de luta e sucesso!
Você é escritora e poeta e estará no Brasil para participar de um festival literário centrado em populações marginalizadas. Na sua visão, o que a literatura pode contribuir para a justiça social e os direitos humanos?
A literatura contribui iluminando diferentes experiências de vida, compartilhando essas experiências como iguais e legítimas a de qualquer outro. A literatura dá acesso aos imaginários do mundo e, assim, abre-se à alteridade. A alteridade é a condição para estarmos cientes dos outros, para entendermos nossa condição comum como seres humanos, para adotarmos a solidariedade como condição vital da vida social. Mas a literatura tem seu próprio projeto, sentido e sensibilidade. Não é suposto que ela faça o trabalho político.
Aos 72 anos, qual você considera ser o legado mais importante para as gerações futuras?
Obrigada por me lembrar que não sou mais uma garota jovem e dinâmica (risos). No entanto, sinto-me tão fervorosa como quando eu tinha vinte anos, com uma diferença ainda colossal: EXPERIÊNCIA. Somando-se à fidelidade aos meus ideais e valores dos quais nunca desisti, a minha experiência foi que usar o conhecimento e questionar ajuda muito no contínuo esforço de pensar. Nunca parei o esforço de testar minhas próprias crenças. Sempre pensei que não há segurança duradoura no egoísmo. Acredito que a lição mais preciosa que podemos transmitir à nova geração é: NUNCA TRAPACEAR! Mesmo que ninguém saiba, sua consciência sabe, e isso faz TODA A DIFERENÇA!
Fonte: O Globo