Foi equivocada a manifestação de apoio à Kamala Harris feita pelo presidente Lula. Não cabe a um chefe de Estado estrangeiro se posicionar abertamente sobre o processo eleitoral democrático em um outro país. Afinal, como líder do Brasil, precisará lidar com quem quer que esteja no poder em Washington independentemente de o presidente dos EUA ser do Partido Democrata ou do Partido Republicano. O importante sempre é avançar as relações bilaterais e defender os interesses brasileiros.
Não havia necessidade alguma de Lula declarar apoio a Kamala dias antes da eleição. O correto seria esperar pelo resultado, parabenizar o vencedor ou vencedora e dizer estar disposto a manter o diálogo entre os dois países. Manuel Lopez Obrador, ex-presidente do México, de esquerda, soube evitar atritos com Trump e conseguiu trabalhar com o governo republicano em zonas de interesse dos dois países. Quando Trump quis renegociar o NAFTA, aproveitou o momento para melhorar o acordo para o México em vez de comprar uma briga. Deu certo e os mexicanos conseguiram benefícios. Sua sucessora, Claudia Sheinbaum, segue na mesma linha e evitou apoiar Kamala. Afinal, sabe que é presidente do México e não está entre suas atribuições se posicionar sobre as eleições americanas, mas precisará lidar com o ocupante da Casa Branca em questões como economia e imigração.
Caso Donald Trump seja eleito, como será o comportamento de Lula? Como o republicano levará em consideração o posicionamento do presidente do Brasil em apoio à sua adversária? Inclusive, o presidente brasileiro poderia até desenvolver uma boa relação com Trump, assim como teve com George W. Bush. O republicano também poderia se dar bem com Lula, assim como se deu com o esquerdista López Obrador. Não existe, da parte de Trump, nenhum compromisso com Jair Bolsonaro. O ex-presidente costuma gostar de líderes fortes, independentemente da linha política. Basta ver suas boas relações com Kim Jong-Un (Coreia do Norte), Recep Tayyp Erdogan (Turquia), Vladimir Putin (Rússia) e Mohammad bin Zayed (Emirados Árabes) e tratar como fãs figuras como Javier Milei e o ex-presidente brasileiro.
Curiosamente, em política externa, Lula e Trump compartilham de visão quase idêntica sobre a Guerra da Ucrânia. O brasileiro e o republicano defendem um cessar-fogo imediato por meio de negociações, ainda que a Rússia mantenha controle sobre territórios ucranianos. Kamala Harris, por sua vez, é uma árdua defensora da aliança ocidental em apoio à Ucrânia e às sanções à Rússia. Claro que, em outros temas, haveria divergências. Mas o mesmo ocorreria com Kamala Harris no poder.
Jair Bolsonaro errou ao apoiar Trump em 2020 e teve de pagar o preço com a eleição de Joe Biden, que o esnobou por meses. Lula comete o mesmo erro e pode se dar muito mal em uma possível vitória de Trump. Figuras experientes como Erdogan e Netanyahu, que precisam manter boas relações com quem quer que esteja na Casa Branca, evitaram manifestar suporte a um dos candidatos, ainda que seja a óbvia a preferência deles pelo republicano. Isso vale para lideranças europeias que claramente preferem Kamala, mas não declaram apoio. No caso de Lula, todos sabemos de sua preferência pela democrata. Era desnecessário falar e correr o risco de ver Trump na casa Branca.
Fonte: O Globo