Júnior Dantas, o menino de Ipueira que virou príncipe

Quando era criança, lá em Ipueira, o ator Júnior Dantas se ofereceu para interpretar o Pequeno Príncipe, personagem consagrado do autor Antoine de Saint-Exupéry. Ouviu da professora que não dava para o papel. Não tinha cabelo loiro, nem olhos claros. Mais que isso, ouviu que só existiam príncipes brancos. Deixa estar que o tempo passa e Júnior se torna ator profissional, passa a morar no Rio de Janeiro, e resolve aquela velha questão do passado montando o espetáculo “O Pequeno Príncipe Preto”, inspirado no original de Exupéry, mas desta vez com um negro no papel principal, ele próprio.

Com produção independente e direção do dramaturgo (e ex-BBB 2019) Rodrigo França, a peça já foi apresentada em mais de 30 cidades de Norte à Sul do país, com público que supera as 60 mil pessoas – número 20 vezes maior que a população de Ipueira. A cidade ainda não recebeu o espetáculo, muito menos Natal ou qualquer município do Rio Grande do Norte. Mas é o grande desejo de Júnior se apresentar em casa. O espetáculo rendeu também um videoclipe com participação da atriz Ruth de Souza.

Nesta entrevista à TRIBUNA DO NORTE, Júnior Dantas fala de sua trajetória, de quando migrou do jornalismo para o teatro, do quando saiu de Campina Grande para o Rio. Ele também contou histórias da turnê com o espetáculo e adiantou que está preparando uma nova peça, na mesma linha, que vai compor futuramente uma trilogia.

Ipueira
Ipueira é minha raiz, é de onde eu vim, e é pra onde vou voltar. É onde eu estudei, onde está minha família, meus amigos de infância. Na festa da padroeira, em agosto, é o período que sempre retorno. São dez dias de festa. É quando se encontra todo mundo. A gente vê a filarmônica, as bandas de forró, tem as comidas gostosas. A cidade entra num clima todo especial. Sempre que vou com tempo tento fazer palestra, conversar sobre cultura, ministrar oficina.

Infância lúdica
Tive uma infância lúdica. Lembro de ver o circo, acompanhar o carro de som anunciando que teria filme projetado na parede do mercado. Na cidade tinha um grupo de teatro chamado Raio de Cultura. Me encantava muito com tudo aquilo, tanto que nunca saiu da minha cabeça. Ipueira é um lugar com muitas histórias, com pessoas que dão ótimos personagens.

Campina Grande
Morei em Ipueira até os 17 anos. Foi onde comecei no teatro, fazendo gincana. Depois fui morar em Campina Grande para fazer faculdade de Jornalismo. Em Campina entrei pela primeira vez num teatro e percebi que aquele era o meu lugar. Então me profissionalizei e integrei duas companhias, a Satyricom e a Heureca. Morei pertinho do Teatro Severino Cabral.

Rio de Janeiro
De Campina fui pra Angra dos Reis, onde trabalhei cinco anos num jornal impresso. Mas lá também fiz mais de 20 espetáculos, fui professor, trabalhei num teatro local. Em Angra tem um festival, o FITA (Festival Internacional de Teatro de Angra), foi quando a diretora Inês Viana apareceu para montar um espetáculo com texto inédito de Ariano Suassuna: “As Conchambranças de Quaderna”. Eu passei no teste para o elenco. Mas a montagem foi no Rio de Janeiro, então me mudei pra lá. Dessa experiência surgiu o grupo OmondÉ, que completou dez anos. Este mês acabamos de fazer outra peça inédita de Ariano, “Auto de João da Cruz”.

O Pequeno Príncipe Preto
Eu queria montar um espetáculo infanto-juvenil que conseguisse se comunicar com toda a família. Foi quando lembrei do episódio de Ipueira, a professora me dizendo que eu não podia fazer o príncipe porque eu não tinha as características. É uma história que se repete todos os dias pelo Brasil. Então usei esse episódio no texto, fazendo improvisos. O Pequeno Príncipe é um clássico, segundo livro mais vendido no mundo. Montei a peça de forma independente, trazendo a história para cultura brasileira e africana, falando de racismo, preconceito, mas de uma maneira lúdica, com empatia, levantando a autoestima. Tem amor, respeito, filosofia Ubuntu, e toca muito na questão da ancestralidade. Lembramos que a luta que os negros travam vem de muito tempo.

Contato com a plateia
Quando acaba a peça, começa outro tipo de espetáculo, que é quando conversamos com as famílias. Nessa contato já aconteceu de tudo. Crianças mostrando que o cabelo do pai é igual o meu, comparação de tom da pele, gente que diz que se tivesse visto a peça 30 anos atrás teria crescido de modo mais empoderado. Teve uma senhora que estudou a vida inteira numa escola de freiras. Ela sempre quis coroar Nossa Senhora, mas por ser negra, ouviu de uma das freiras que no céu não tem anjo negro. Durante anos teve medo de que morrendo iria para o inferno por que não era branca.

Estreia na Copa
Estreamos “O Pequeno Príncipe Preto” no Rio de Janeiro em junho de 2018. Era mês de Copa do Mundo. Tivemos apresentação na hora do jogo do Brasil, mas com plateia lotada. Ficamos três meses em cartaz no mesmo teatro, depois começaram a chegar os convites. Já passamos por mais de 30 cidades. Minha família pôde me ver quando apresentamos a peça em Campina Grande, que foi o lugar mais próximo de Ipueira que apresentei. Foi um dia de muita emoção.

Cidade sem teatro
Ipueira não tem teatro. É uma cidade muito forte no artesanato, na música, na poesia, e mesmo no teatro, mas não tem um lugar para apresentação. Mas quero muito levar esse espetáculo pra lá, para Natal, Caicó e outros municípios.

Trilogia
Depois do Príncipe Preto quero fazer outros dois espetáculos na mesma temática. Minha proposta é quebrar esses padrões, como o de todo príncipe ser loiro, o de não existir muitas bonecas pretas, o de não encontrarmos na TV pessoas que pareçam com a maioria da população. Agora Estou montado a segunda peça, trabalhando a figura do herói. Na minha infância lembro que as apresentadoras eram brancas. Tinha o Sítio do Pica Pau Amarelo, mas a negra que tinha era a Tia Anastácia, que só servia comida. Tinha também o Saci, um personagem que faltava uma perna, fazia coisas ruins e fumava um cachimbo. Cadê as coisas positivas? Por que na escola a gente não aprende sobre heróis negros? Então vamos novamente falar dessa questão, falar de amor, empatia, queremos que as pessoas saiam do teatro felizes, falando sobre o tema, que a peça não termine quando a cortina fechar.

Produção potiguar
Tenho acompanhado a produção do RN aqui do Rio. Conheci o pessoal do Carmin, assisti “Jacy” e já perdi as contas de quantas vezes vi o “A Invenção do Nordeste”. Recentemente assisti o “Meu Seridó” (da produtora Casa de Zoé, de Titina Medeiros), tinha tempo que queria ver. Me senti em casa, porque fala do Seridó, e em cada palavra era como se eu voltasse para Ipueira. Também já vi a Khrystal no espetáculo Elza, onde tenho outros amigos na produção. Mesmo distante, eu procuro acompanhar a produção do meu estado. E quero muito um dia ir na Casa da Ribeira me apresentar.

Da Tribuna do Norte