Instituições ligadas aos Direitos Humanos entregam documento sobre o Sistema Prisional do RN e sugerem encaminhamentos e propostas

Instituições, como a Pastoral Carcerária, Comitê Estadual de Prevenção e Combate a Tortura no RN e o Conselho Estadual dos Direitos Humanos e de Cidadania entregam oficialmente na última quinta-feira (17), um documento sobre o Sistema Prisional do Estado do RN, e sugerem encaminhamentos e propostas.

Um dos trechos do documento chega a classificar o Sistema Penitenciária do RN como um espaço de horrores e violações de direitos humanos.

A situação das pessoas que estão cumprindo pena em regime fechado no RN atualmente se constitui num acentuado estado de barbárie, torturas e maus-tratos: superlotação para punir e controlar, instituição de um chamado “procedimento” que pode ser comparado a verdadeiro ritual de humilhação, opressão e tortura; longas e frequentes punições individuais e coletivas injustificáveis do ponto de vista legal e da proporcionalidade entre o fato (in)determinado e a penalidade aplicada; uso excessivo de armas letais e menos letais, ameaças diversas, espancamentos e uma acirrada doutrinação da ideologia da segurança e da periculosidade marcada pela proibição de contato dos agentes com os detentos, incluindo a não permissão de servidores e presos serem chamados pelo nome e a utilização corriqueira de máscaras pelos policiais penais. A concepção da execução é de confronto, de guerra com métodos de controle sustentados pela força das armas, da violência e do terror, como em campos de concentração e extermínio”, diz um dos trechos do documento.

O documento aponta uma lista de 10 problemas e violações mais apresentados por familiares de presos e egressos do Sistema Prisional do RN.

São eles:

  1. Violências, torturas, opressões, castigos individuais e coletivos aplicados indiscriminadamente sem base legal;
  2. Alimentação em pouca quantidade e de má qualidade;
  3. Adoecimento progressivo da população prisional, com problemas graves de saúde;
  4. Falta de atividades ao ar livre, como o banho de sol (máximo de 1 hora, uma vez por semana ou menos);
  5. Tempo excessivo de permanência dentro das celas insalubres e superlotadas;
  6. Procedimentos disciplinares abusivos e violentos;
  7. Tratamento desumano e discriminatório com os familiares e pouco tempo disponível para as visitas presenciais (máximo de 1 hora, uma vez por mês);
  8. Proibição da visita conjugal entre presos(as) e cônjuges;
  9. Desperdício e descaso com os pertences dos presos providenciados pelas famílias, inclusive os quais deveriam ser de responsabilidade do Estado;
  10. Dificuldade quanto ao acesso à educação, a projetos e à qualificação profissional;

O documento é encerrado com sugestões e propostas para a melhoria do Sistema Prisional do RN.

01        – É importante considerar o perfil dos gestores das unidades, levando em conta: capacidade de gestão, conhecimento, aptidão e identificação, experiência e compromisso com o trabalho e com o respeito aos direitos humanos, em face da sua complexidade e necessidade de cuidados especiais. Os mesmos critérios devem ser considerados para a cúpula da gestão. Grande parte dos conflitos e violações existentes no sistema decorre da não observância destes pré-requisitos.

É necessário promover formação para gestores e chefes de disciplina em primeiro momento, estendendo esse processo para todos os profissionais que estão à frente da execução do sistema prisional, levando-se em conta conteúdos alinhados com a Constituição da República e legislação nacional e internacional em vista dos direitos humanos e respeito à dignidade humana

02        – Manter uma política integrada de segurança pública e justiça criminal, envolvendo as Polícias, a Defensoria Pública, o Ministério Público, o Judiciário, outras instituições públicas municipais e estaduais e da sociedade civil, no sentido de articular ações de prevenção e diminuição da violência e estratégias que evitem o encarceramento em massa, prender menos, aplicando penas alternativas, práticas restaurativas, de mediação de conflitos, visando diminuir e prevenir a violência e promover uma cultura de paz em consonância com o Plano Estadual de Segurança Pública e o Sistema Estadual de Segurança Pública, seus princípios, diretrizes e ações.

A construção de mais cárceres e a repetida aposta no sistema penal para a resolução de problemas sociais, não tem surtido nenhum efeito positivo. Em verdade, a proliferação de prisões tem sido elemento determinante no aumento da violência dentro e fora das grades. Por estas e outras razões, nossa proposta é de se instituir uma política de desencarceramento massivo e de abertura do cárcere à sociedade, para que esta possa ajudar na humanização do sistema de execução e exercer o papel central do controle das violações dos direitos das pessoas presas e das diversas formas de violência delas decorrentes;

03        – Reestruturação da Ouvidoria do sistema penitenciário com autonomia, ouvidor com mandato, escolhido pelo Conselho Estadual de DH ou Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura em lista tríplice à governadora. As ouvidorias representam atualmente grandes instrumentos de contribuição às empresas públicas e privadas, estabelecendo uma ponte importante entre a sociedade e as instituições, sempre numa perspectiva de melhorar os serviços e exercer o controle externo das políticas do setor, também é fundamental no sentido de envolver a sociedade e as instituições sociais para oferecerem contribuições e ajudas diversas, um grande imperativo indispensável às políticas públicas nos dias atuais. É, portanto, determinante que a ouvidoria tenha autonomia e independência para o exercício de suas funções, para manter os níveis de confiança e participação da sociedade, preservando a transparência e os ideais democráticos da sociedade. Sem estas prerrogativas, a ouvidoria perde sua legitimidade e confiança;

04        – As APACs são uma experiência comprovada de êxito e eficácia na execução da pena, por múltiplas razões, como :a baixa reincidência, o baixo custo, a participação do apenado, da sua família e da sociedade no processo de execução, entre outros fatores. Importante também incentivar a criação e/ou fortalecimento, com a participação da ouvidoria da SEAP, dos Conselhos da Comunidade nas Comarcas, prioritariamente, nas cidades onde existem unidades prisionais;

05        – A contratação de equipes técnicas para atuarem nas unidades é absolutamente indispensável. O RN é um dos poucos estados que não dispõe destes servidores e isto inviabiliza muito as assistências e deteriora a vida na prisão;

06        – Um problema que merece muita atenção é o tratamento penal que se oferece às mulheres privadas de liberdade. De um modo geral têm menos direitos que os homens, a começar pelas visitas conjugais que não existem ou são dificultadas tanto pelo sistema como pelos próprios homens. Os espaços, normalmente são aproveitados, prédios que não foram construídos para ser prisão feminina, as especificidades femininas são pouco observadas, a exemplo da questão dos cuidados com a saúde preventiva, o período menstrual, as mulheres mães, os filhos, etc;

07        – Assistência ao egresso: quando abordamos no presente texto a precariedade do sistema, falamos do problema da reincidência criminal, da falta de assistência, da ociosidade e de outras graves situações que afetam a população prisional. É importante e indispensável a atenção e assistência ao preso que já cumpriu sua pena no fechado, que seria um reforço, oferecendo atendimento e apoio para seu retorno seguro para sua família e para sociedade em condições de não mais reincidir. Temos atualmente uma iniciativa do TJRN em parceria com os municípios, denominados Escritórios Sociais, equipamentos sociais de muita importância, mas que para cumprir seu papel a contento, necessitam de maior investimento do poder público;

08        – Pelo que podemos perceber a missão de oferecer algumas respostas para melhorar a situação do sistema como um todo, é tarefa difícil e de responsabilidade de muitos atores. Neste sentido, a SEAP não pode perder de vista a grande necessidade de estabelecer parcerias em diversos níveis, visando conseguir avanços conjuntamente. Para isso é preciso manter-se aberta e atenta a todas as possibilidades, tanto com as instituições do poder público quanto da sociedade civil. É preciso definir estratégias e um planejamento para conseguir êxito neste pleito, a começar pelo próprio sistema que normalmente cria, principalmente a partir da doutrina doentia da segurança, grandes dificuldades onde as parcerias são impostas e não conquistadas. A Constituição dos Conselhos da Comunidade é uma das medidas indispensáveis. Este instrumento comunitário de ajuda na execução penal, previsto na LEP, envolve a comunidade, o juízo da execução e movimenta toda a sociedade se forem ativos, bem constituídos e valorizados;

09        – Outro segmento que merece atenção especial são os familiares dos presos. A família e as igrejas são praticamente os únicos referenciais positivos que eles(as) tem na prisão e que os visitam, então é preciso levar em conta a valorização, o acolhimento e o respeito a suas famílias com o que se estará contribuindo com o aumento da possibilidade de mais segurança na prisão, mesmo que não se acredite nisso, porque a família bem tratada, orientada e respeitada funciona como um mediador positivo no convencimento para dissuadir o seu parente preso quando estiver querendo fazer alguma coisa errada como fugas, motins e outros atos contrários à ordem e à disciplina.

A família maltratada termina por apoiar ou ficar neutra quando o seu parente preso lhe revela algum plano deste tipo. Atualmente o tratamento dado aos familiares é aviltante em praticamente todas as unidades prisionais. Para realmente valorizar a presença das famílias como fator importante no processo de socialização do interno é preciso tomar decisões no sentido de se definir estratégias que facilitem e viabilizem esse processo, de preferência em parceria com as próprias famílias, do tipo:

  1. a) Duas visitas mensais de, pelo menos, quatro horas de duração (uma manhã ou uma tarde) para permitir a convivência e as partilhas, tão necessárias e de direito, podendo incluir aqui as visitas íntimas. Permitir, a partir de critérios, a entrada de alimentos nos dias de visitas;

 

  1. b) Acabar com a exigência de farda ou vestimenta padronizada para os familiares, isso se constitui num grande abuso, as famílias não estão presas. No máximo, recomendar uma ou outra cor e tipo de vestimenta que não devem ser usadas;

 

  1. c) Outro grande problema que as famílias enfrentam é o deslocamento que realizam, ou não o fazem por falta de condições econômicas, para visitar seus parentes que cumprem pena em unidades muito distantes. A proposta é que a SEAP realize levantamento sobre onde moram os presos, suas famílias e comunidade de origem e defina estratégias visando viabilizar a transferência para unidade mais próxima do seu domicílio, conforme orienta a lei, isto, com certeza, evitaria muitos problemas;

 

  1. d) Os familiares, na sua grande maioria, enfrentam muitas dificuldades econômicas e ainda são obrigados a comprar materiais de higiene pessoal e de limpeza, além de outras contas como remédios, colchões, lençóis etc. A proposta é que o Estado assuma essas despesas e proíba, de verdade, que os policiais penais destruam ou subtraiam os pertences dos internos, por ocasião das inspeções, revistas e outros meios.

 

10        – Alimentação: Depois da violência e maus-tratos, alimentação se constitui no item que mais é colocado como problema sempre com referência à qualidade e quantidade dos alimentos. Isto tem impactado diversos aspectos da saúde, da perda de peso, da desnutrição da população prisional, sem que se resolva o problema. É preciso esclarecer essa situação fazendo diagnóstico de quais os fatores que estão gerando essa deficiência e resolver definitivamente o problema.

11        – Banho de sol: O tempo que os presos passam nas celas é excessivamente grande tendo impacto decisivo na saúde dos mesmos, situação que fere a lei e os princípios humanitários que orientam uma boa execução penal. Quem está preso tem o direito de tomar sol suficiente (pelo menos 2h diárias), praticar esporte e lazer, trabalhar, estudar e ocupar-se em outras atividades. Considerando esses direitos, o tempo nas celas se restringiria a espaço destinado ao repouso noturno e outros momentos que não estivessem em atividades externas. Manter os internos o mais possível fora das celas e no convívio social entre eles se constituiria em fator importante para evitar o adoecimento psicossomático, estratégia que não custaria recursos financeiros adicionais;

12        – Castigos aplicados indiscriminadamente por qualquer motivo: Os castigos são aplicados no sistema penitenciário do RN de modo absolutamente indiscriminado, por qualquer motivo que o policial penal ache necessário. As punições coletivas, frequentemente utilizadas, servem juntas com as individuais para aterrorizar e produzir o controle que desejam, acompanhadas de outros métodos como spray de pimenta, espancamentos, etc. É urgente que o Estado promova a regulamentação desse processo e adote outras medidas para impedir que essa situação de abusos e ilegalidade continue a ocorrer. A justiça da execução penal tem muito de atribuição e de responsabilidade no combate a essas e outras violações;

13        – Saúde: O problema da saúde no sistema prisional do RN aparece entre os três mais relatados e denunciados pelos presos, egressos e familiares do sistema junto com a violência/maus-tratos e alimentação. As unidades são um espaço de doenças e adoecimento que atinge um grande número de presos, alguns lesionados de maneira definitiva que ensejam e sugerem ações de responsabilização do Estado, levando-se em conta que entraram nas unidades sem essas doenças ou lesões. Nestes dias, a informação que tivemos revelou que só na unidade de Ceará-Mirim havia 49 internos acometidos de tuberculose, um número alarmante que revela o descaso a que chegamos no trato da saúde da população prisional do RN. Os distúrbios emocionais/mentais são preocupantes, potencializados em muito, pelo tratamento cruel e desumano com que são tratados nas prisões do Estado.

Costumamos dizer que a violência e os maus-tratos perpetrados por diversas ações previstas no procedimento, a alimentação insuficiente e deficiente e o tempo excessivo que os presos passam nas celas superlotadas, insalubres, infectadas, são responsáveis por grande parte do processo de adoecimento dos internos em nosso sistema prisional. Se isso é verdade, imagina quanta responsabilidade recai nas autoridades que exercem poder na gestão prisional e dos executores diretos dessa política. As normas e regras de segurança não devem se sobrepor aos direitos humanos mais básicos relacionados com a vida e a dignidade humana e, portanto, devem ser adaptadas para produzir o resultado desejado, sempre com muita moderação e respeito ao ser humano, mesmo sendo um prisioneiro.

Nossa proposta é que seja adotada uma política de execução penal baseada na educação e no cuidado. Que sejam otimizadas as equipes de saúde nas unidades, com condições de oferecerem um bom atendimento e sejam bem capacitadas para lidarem com os presos, suas famílias e a gestão prisional;

14        – Acabar com algumas ações do procedimento de segurança e disciplinar, entendidos e descritos em diversos documentos como torturas, maus-tratos, abuso de poder e desrespeito â dignidade dos internos e das famílias, pensados de modo a facilitar toda essa escalada de violência, que facilitam a dominação, o controle e a subtração de direitos como as visitas das famílias, amigos e banho de sol;

14.1     – Abolir definitivamente as práticas de torturas, expressas através de espancamentos, utilização abusiva e desnecessária de spray de pimenta, balas de borracha, bombas de gás e outros tratamentos cruéis e desumanos.

14.2     – Outras práticas devem ser abolidas pois representam abuso de poder e aviltamento moral, humilhação e desmoralização dos internos, promovidas através do desnudamento frequente, inclusive na presença das policiais penais femininas, exames minuciosos da boca (como em tempos da escravidão) quando saem das celas em alguns momentos, também proíbem os presos de poderem olhar para os policiais penais, chamá-los pelos nomes e terem que dizer licença senhor(a) quando passam por eles(as). Aqui se poderia continuar a narrar outras atrocidades que parecem inacreditáveis, como obrigar os presos a se deitarem no chão ou ficarem de quatro pés e andarem de coturnos por cima deles, xingá-los moralmente,….

14.3     – Uma das práticas mais reprováveis do procedimento é a obrigação dos internos terem que ficar sentados, um encaixado no outro e, às vezes nus, com as mãos na cabeça, durante todo o tempo em que os servidores públicos da unidade estiverem no pavilhão ou conforme a vontade deles em alguns momentos. Decididamente, isso não tem nada a ver com segurança, mas, sim, com métodos de maus-tratos, humilhação, domínio arbitrário e tudo que se possa pensar em matéria de opressão;

14.4     – Por fim, é urgente e necessário rever toda a filosofia e as práticas do procedimento implementado no sistema prisional do Rio Grande do Norte, num momento de graves conflitos e crise institucional, cuja história não foi resgatada para ajudar a compreender as estratégias fortes do ponto de vista repressor e violador de direitos, equivocadas, implementadas no setor. Em nome da segurança das pessoas, do patrimônio, tudo se justifica e se aplicam métodos desalinhados com a legislação protetora e com princípios e técnicas de abordagem que nada ou quase nada tem a ver com segurança. O Estado devia prestar mais atenção nos verdadeiros motivos e situações que geram ou podem gerar insegurança em grande escala, como manter o aprisionamento em massa de pessoas, na sua maioria muito pobres e/ou negras, muitas delas acusadas de crimes sem violência grave, além da desassistência a que são submetidas. Considere-se, ainda, os quase 40% da população prisional provisória, prática abusiva e inconstitucional. Ainda lembramos o mais terrível dos fatores geradores de insegurança que se materializa nos maus-tratos, nas torturas e violências diversas que se constituem em verdadeira escola do terror a gerar sentimentos de medo, mágoas, ódio, desejo de vingança e desesperanças que se manifestam em diversas situações dentro das prisões e, principalmente, contra a sociedade quando voltarem à liberdade. Então, quem pode gerar mais violência e insegurança? O que viola mais a República, a Democracia e o Estado de Direito, temas tão importantes e em moda no momento atual? Mandela nos faz pensar quando afirma que “Ninguém de fato conhece uma nação até que se veja numa de suas prisões. Uma nação não deveria ser julgada pela forma que trata seus mais ilustres cidadãos, mas como trata os seus mais simplórios.”          (Nelson Mandela)

Nossa proposta é que o chamado procedimento seja repensado e abolidas diversas práticas que violam a Constituição Federal, a lei contra a tortura, a LEP e a normativa internacional e nacional de direitos humanos. Que seja abolida a proibição dos internos não poderem conviver socialmente uns com os outros, medida que subtrai direitos fundamentais como as visitas familiares, o banho de sol, práticas esportivas e de lazer, que não oneram financeiramente num sistema já tão deficiente das assistências previstas na legislação. Acrescente-se que esse procedimento violento é uma exceção entre a quase totalidade dos estados brasileiros e que tem uma história que precisa ser revisada. O atual governo federal não pode patrocinar uma barbárie dessas, especialmente quando se coloca ao lado das minorias oprimidas e/ou discriminadas, população predominantemente jovem, pobre e negra. As peritas do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, recentemente inspecionando o nosso estado, em audiência pública no Ministério Público Federal.

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