Emoções fortes, calor intenso, barulho incessante e aglomeração na arquibancada. O que parece uma descrição trivial de uma partida de futebol é, também, para torcedores dentro do Transtorno do Espectro Autista (TEA), uma seleção de gatilhos para um episódio de “desregulação” — como é chamada a crise, dentro do TEA, disparada por estímulos indesejáveis, desde frustrações até gritos inesperados ou a impossibilidade de sair de um ambiente lotado.
De olho nesses fatores, torcidas organizadas por autistas, e suas famílias, começam a ganhar corpo na arquibancada e motivam uma desejosa movimentação dos estádios, que passaram a, timidamente, criar salas sensoriais — montadas para que o torcedor autista tenha um refúgio do que lhe causa aversão momentânea.
Nas arquibancadas, a primeira torcida montada com o objetivo acomodar esses torcedores foi a dos Autistas Alvinegros, fundada em abril do ano passado por Rafael Lopes e Juliana Prado. Corintiano e acostumado a frequentar estádios desde criança, Rafael foi diagnosticado com TEA aos 33 anos. Juliana recebeu o diagnóstico também tardiamente, aos 28.
— Mesmo com algumas dificuldades, sempre gostei de ir a estádios. Fizemos a primeira faixa dos Autistas Alvinegros sem muita pretensão, mas deu muito certo. Não imaginávamos que seria tão rápido. As pessoas começaram a vir até nós, independentemente do time que elas torcem. É um motivo de muito orgulho que o nosso exemplo tenha sido seguido — conta Rafael, que hoje se dedica quase que em tempo integral à torcida e à causa da inclusão de autistas na sociedade.
A exposição da faixa dos Autistas Alvinegros em jogos do Corinthians fez com que a ideia se difundisse e hoje estima-se que 22 agremiações dão voz ao segmento, uma novidade sem precedentes. A NeoQuimica Arena, em Itaquera, lar do “Timão” também deu bom exemplo: o lugar foi um dos primeiros a elencar um setor TEA com atenção especial aos torcedores atípicos.
A tradicional rivalidade entre times, inclusive, não tem espaço nesse novo tipo de torcida. Tome-se por exemplo a fotógrafa Robertha Gomes, de 37 anos, uma das administradoras do movimento Autistas da Ilha, do Sport Club do Recife. Mãe de um menino de 4 anos diagnosticado com TEA, em 2022, ela tem auxiliado outra torcedora, do rival Santa Cruz, a montar um grupo do tipo por lá também.
— Nessa hora não tem rivalidade. Acho que a questão maior é a gente lutar pela inclusão. É uma coisa maravilhosa essa galera da arquibancada inclusiva, a gente vai sempre se ajudando — diz Robertha.
No Fluminense, o movimento “Autistas Flu” celebra o time sob o slogan “Força, glória e inclusão”. O grupo reúne 6,2 mil seguidores nas redes sociais e o time, inclusive, já levou crianças com autismo de mãos dadas com jogadores antes de partidas.
No Flamengo, também há movimentações. Marcos Felipe Leal, de 48 anos, pai de um adolescente de 14 anos, decidiu criar a torcida Autistas Rubro-negros, apesar de seu filho não ter interesse por esporte. O garoto é diagnosticado com o nível 3 do transtorno, cujo manejo em ambientes públicos requer mais suporte — e é bastante desafiador.
— Nunca pensei em iniciar esse movimento pelo meu filho, mas sim porque tem muita gente que gosta de futebol e se sente impossibilitada de ir aos jogos. Fazemos isso para ajudar essas pessoas, para que todos tenham a oportunidade de irem aos estádios.
Marcos diz que o time Flamengo se dispôs a estender a faixa da torcida em todos os jogos no Maracanã e doou abafadores de som que são distribuídos aos torcedores mais sensíveis a ruídos. Por outro lado, a construção de uma sala sensorial no estádio ainda não foi iniciada, apesar de uma lei municipal sancionada em julho obrigar arenas esportivas com capacidade superior a 5 mil pessoas a terem espaços adaptados para o público com TEA. Botafogo e Vasco também ainda não dispõem de salas sensoriais em seus estádios. O período para adequação previsto na lei é de seis meses, prazo que vai expirar em janeiro.
Movimentações do tipo, embora lentas, trazem frutos para além das quatro linhas do campo, dizem especialistas.
— O envolvimento do autismo no futebol ajuda a sensibilizar, desmistificar, e informar a sociedade sobre o que é TEA. O contato com o diferente traz vantagens para todos — pondera Victor Martinez, do Instituto Jô Clemente, referência em inclusão social.
Nesse cenário, o São Paulo Futebol Clube instalou em seu estádio, o Morumbi, uma bem equipada sala sensorial para 20 pessoas. O lugar conta com controle de temperatura, pufes para sentar e uma série de equipamentos para aliviar a tensão. Mesmo o trocador de fraldas é adaptado para crianças maiores, caso seja necessário. Há ainda óculos e abafadores. O lugar foi feito em parceria com um centro especializado que usa o local quando não há jogos.
— Chamamos famílias de autistas para conversar e então buscamos especialistas. Descobrimos nessa pesquisa que o tempo para voltar à regulação no ambiente apropriado e com especialistas é de 15 minutos, em média — diz Adalberto Nazareth, diretor de Acessibilidade do São Paulo FC. — No projeto, os autistas podem assistir ao jogo nas cadeiras logo à frente da sala e, se algo ocorrer, elas voltam ao ambiente para se acalmar. E, desse modo, eles vão se acostumando com o estádio.
O casal Rosângela e Michael Barbosa, pais de Lucas Mike, de 17 anos, e João Pedro, de 5, figuram como parte importante desse processo. A família fundou a torcida Sou Tricolor Autista e ajudou o estádio a organizar o espaço. O caçula da casa, João, está identificado dentro do espectro. Entre as manifestações do transtorno, o garotinho tem muita sensibilidade auditiva — o que o faz colocar as mãos no ouvido com frequência. No estado do Morumbi, porém, se sente em casa, brinca, sorri e explora o espaço. O que a família considera uma vitória emocionante.
— Depois da torcida, nossa vida mudou muito. Fui vendo que essa dor (de receber o laudo do filho), ainda mais depois de ver a sala sensorial, tornou-se um legado — diz Rosângela.
Na mesma toada, em Porto Alegre, o Grêmio iniciou no mês passado os testes em um camarote que será adaptado para torcedores autistas. O espaço terá capacidade para receber até 40 pessoas — é um dos maiores camarotes da Arena do Grêmio — e passará por reformas para estar em pleno funcionamento a partir de janeiro.
— O espaço fica em um ponto mais silencioso no estádio, em uma área de menor fluxo de pessoas. — diz o vice-presidente do Conselho de Administração do clube, Gustavo Bolognesi.
Também avança o Allianz Parque, casa do Palmeiras, que planeja tirar do papel uma sala sensorial até janeiro. O espaço contará profissionais capacitados, terapeuta ocupacional e psicólogos especialistas na abordagem ABA (um método de aprendizagem), contou Adriana Martins de Oliveira, coordenadora de Sustentabilidade da WTorre Entretenimento.
Enquanto o projeto não vem, o grupo Autistas Alviverdes conseguiu um espaço de prestígio: o camarote chamado Parque Mirante oferece, em geral, dois pares de ingresso de cortesia, por jogo, para dois autistas e mais acompanhantes. No local há ainda três terapeutas que acompanham a partida e estão aptas a ajudar. A possibilidade de ter uma sala para se acalmar aproxima fãs de seus esportes — que podem experimentar um de seus lados mais benéficos, o de poder ter uma paixão pelo time.
— Para quem tem “hiperfoco” (uma característica do autismo) no futebol, como é meu caso, o esporte é seu banho gelado para desestressar. Se eu estou num momento difícil e lembro que tenho um jogo daqui a dois dias, tudo fica melhor — diz Bárbara Louise, diretora do Autistas Alviverdes e terapeuta.
Há ainda de se dizer que a presença no estádio inaugura novas vontades e interesses. Foi o que aconteceu com o pequeno Pedro, de 7 anos, que visitou o Allianz pela primeira vez com apoio do grupo. Apesar de alguma tensão no momento do gol — e rapidamente amparado pelos pais Helder e Renata Pereira— o garoto adotou um novo questionamento ao seu vocabulário graças à visita. E não economiza no uso.
— Oi, qual time você torce? — perguntou logo à reportagem do GLOBO ao saber que o papo com os pais era sobre futebol.
Fonte: O Globo