Enquanto o governo federal celebra a redução das taxas de desmatamento na Amazônia, a devastação no Cerrado segue alta. Outubro foi o quarto mês do ano com recorde mensal na série histórica de desmatamento no bioma, onde a onda de calor se torna mais severa na ausência de árvores que resfriem a temperatura. Especialistas destacam que as regras do Código Florestal, que permite supressão muito maior em propriedades no Cerrado do que na Amazônia, dificultam a fiscalização e a repressão. Mas frisam que as prioridades da gestão Lula ajudam a explicar os resultados discrepantes.
Na Amazônia, a tendência de alta anterior foi revertida no ano passado, quando os 11.594 avisos de desmatamento representaram uma queda de 11,1% diante de 2021. No Cerrado, por outro lado, os índices não param de subir, e os dados parciais até novembro indicam que 2023 já é o pior ano da série histórica neste sentido. “Parece que a coisa já destrambelhou de novo”, admitiu em setembro a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, durante evento na Câmara que tratou do desmatamento no bioma.
A primeira desvantagem, dizem os pesquisadores, está nas regras de preservação do Código Florestal, sancionado em 2012. A lei determina que propriedades rurais no Cerrado tenham até 20% de seu território protegido em área de reserva legal. O limite sobe para 35% em áreas de Cerrado que estejam em estados da Amazônia Legal. Já se o imóvel for no bioma amazônico, a obrigação é de 80% de proteção. As previsões são resultado de acordos políticos em um projeto de incentivo ao agronegócio, diz Thuault.
— É um projeto de ocupação que entende que se pode desmatar porque é preciso plantar. Quando conversamos com organizações do agronegócio, muitos se preocupam com a floresta, mas dizem que há lógicas econômicas que não conseguem ir contra, e a legislação estabelece isso — pontua a diretora da ONG, que defende acordos com a iniciativa privada para reversão do desmatamento. — Há vários tipos de instrumentos hoje não aplicados no Cerrado, como a moratória da soja, além de leis internacionais. Há a proibição na União Europeia de importação de itens derivados de áreas desmatadas, mas só para a Amazônia, onde muitas medidas foram bem-sucedidas.
Entre 2021 e 2022, cerca de metade do desmatamento no Cerrado aconteceu em áreas privadas. A principal frente está no Matopiba, a região do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Os quatro estados concentram 5.631 km2, ou 77%, de toda área com aviso de desmatamento no bioma desde novembro de 2022.
Mesmo com as permissões previstas em lei, o governo federal deveria sanar brechas, diz Ane Alencar, coordenadora do MapBiomas Cerrado. Ela recomenda a validação dos Cadastros Ambientais Rurais (CARs), que garante a regularização fundiária e a execução do Programa de Recuperação Ambiental para o produtor rural. Até o ano passado, somente 0,4% haviam sido validados, o que atrasa reflorestamentos obrigatórios.
A coordenadora do MapBiomas acrescenta que muitas autorizações para supressão de vegetação dadas por órgãos ambientais estaduais não são avisadas ao sistema federal. Com isso, há descontrole das informações. Ane acrescenta que as autorizações estaduais, em muitos casos, não têm o controle adequado.
— Todo o processo de licenciamento de supressão precisa melhorar. O governo não pode jogar a toalha sobre o desmatamento do Cerrado, só alegando que o Código Florestal permite — afirma ela, que também defende um maior engajamento do setor privado.
O governo não conseguiu também deter o desmatamento ilegal. Para as especialistas, a maior permissividade legal pode aumentar a sensação de que “vale tudo” no Cerrado. Thuault e Ane concordam que a priorização da Amazônia no governo federal é evidente. O Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento no Cerrado (PPCerrado) ainda está em fase final de elaboração, enquanto o plano para a Amazônia foi publicado em abril.
O Ministério do Meio Ambiente reconheceu que a fiscalização no Cerrado é prejudicada pela falta de integração das autorizações estaduais de supressão ao sistema federal, mas diz que “está em diálogo com os estados para aprimorar as ações de monitoramento e controle”. Nos próximos dias, o PPCerrado será lançado, informa a pasta.
— É difícil entender porque o mesmo remédio aplicado na Amazônia, de combate às ilegalidades, não funciona no Cerrado. Grande parte das fichas estão voltadas para a Amazônia, que é o maior bioma, tem apelo internacional e é muito relevante na emissão de gases de efeito estufa. Mas o Cerrado também precisa ter prioridade. Metade do desmatamento na Amazônia acontecia em área pública. Só ao atacar isso (no Cerrado), o governo já consegue redução nas taxas — recomenda Ane.
Berço de grande parte das bacias hidrográficas brasileiras, o Cerrado tem uma savana que abriga mais de 5% da biodiversidade mundial. Nele, vivem cerca de 25 milhões de pessoas, incluindo cerca de cem povos indígenas. Mas, com a alta do desmatamento, foram impactados os mecanismos de proteção naturais contra eventos extremos, cada vez mais frequentes com as mudanças climáticas.
Um desses eventos é a oitava onda de calor do ano e uma das mais severas. Os estados cobertos pelo Cerrado, no Centro-Oeste e parte do Nordeste, são os que mais sofreram com as altas temperaturas na última semana.
— Não é que o desmatamento tenha provocado essa onda. É um fenômeno global. Mas um meio ambiente natural amenizaria os efeitos. Só que os crimes ambientais quebraram nossa proteção — afirma Luciana Gatti, coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). — Quanto mais a gente desmata, menos chuva há e mais aumenta a temperatura. No Matopiba estão pegando água direto no aquífero, porque secaram os rios. Estamos caminhando para um colapso cada vez mais rápido.
O impacto do desmatamento no regime hídrico foi calculado pelo Climate Policy Initiative//PUC-Rio, que apontou um efeito dominó na Amazônia, onde o corte de cem árvores mata outras 22 em uma área distante por falta de água. O mesmo vale para o Cerrado.
— Quando um fenômeno global, como a onda de calor, vem para regiões degradadas, os efeitos são propagados — diz Juliano Assunção, diretor-executivo do Climate Policy Initiative/PUC-Rio, que estuda políticas públicas relacionadas ao combate às mudanças do clima.
Fonte: O Globo