Fomos chacoalhados nos anos 1990 pelos chamados “anões do orçamento”, em razão de sua baixa estatura política. Com destaque a um certo deputado que tentava legitimar os recursos ilícitos amealhados comprando bilhetes premiados de loteria no mercado paralelo e declarando que tinha recebido a “ajuda de Deus”. Houve CPI, alguns indiciamentos e pouquíssimas punições.
Mas as regras inerentes à gestão do orçamento público foram aperfeiçoadas para prevenir as fraudes ali descobertas. A nova versão da fraude se chama hoje “orçamento secreto”, sistema em que o relator do Orçamento concentra poderes. Isto é, em vez de termos destinação claramente previsível e direcionada a uma política pública determinada, quebra-se esta lógica e a própria lógica das emendas, entregando-se fatia gigantesca nas mãos do relator do Orçamento.
Uma reportagem de Ranier Bragon da Folha de S.Paulo mostra que deputados e senadores mais que dobraram nos últimos anos o poder de direcionar as verbas do Orçamento federal. Mas isso não tem sido acompanhado pela adoção de medidas de transparência, critérios objetivos para destinação dos recursos ou métodos de consulta democrática à sociedade.
Iniciativas batizadas como “edital de emendas” ou “emendas participativas” são adotadas há alguns anos por pouquíssimos congressistas, cada um com um modelo diferente. Na regra geral, entretanto, cada deputado ou senador decide por conta própria e dentro de gabinetes o direcionamento das bilionárias verbas das emendas parlamentares –um montante de R$ 46,3 bilhões estimado para 2023, cerca de 1/4 de tudo o que o governo federal tem para uso livre.
É fundamental termos clareza sempre que o Orçamento é público e deveria atender às necessidades da sociedade. Além de partir da prevalência do princípio fundamental do interesse público.
Dentro do sistema democrático, o poder é exercido por mandatários eleitos em nome do povo, pelo povo e para o povo. Mas isso apenas na teoria, pois a prática é bem diferente –como mostra a reportagem e a própria realidade.
Representam exceção, infelizmente, os congressistas que adotam algum tipo de procedimento democrático de consulta visando a atender o interesse da sociedade de forma impessoal. O número equivale apenas a cerca de 2% do total do Congresso, o que significa concluir que 98% dos deputados federais e senadores pouco se importam com esse tipo de critério.
Ao serem entrevistados pelo repórter, congressistas se justificaram explicando que não poderiam destinar verbas em emendas para localidades nas quais não tivessem recebido votos. Na visão deles, isso os colocaria em maus lençóis com seus eleitores fiéis, que passariam a olhá-los como ingratos.
Analisemos de forma mais esmiuçada o significado dessa justificativa, que simboliza certamente o pensamento médio congressista nacional. O requisito para receber verba é ter votado no político, ou seja, ser cliente político do congressista, pouco importando a relevância do interesse social em jogo. O político é o dono da verba e a maneja de acordo com seus próprios interesses pessoais.
Vamos imaginar que o reduto do congressista seja razoavelmente bem guarnecido em matéria de saúde pública em comparação com o município B de outra região, que nele não votou e vive penúria total e justifica suas necessidades. Por sua lógica enviesada clientelista, mesmo sem precisar, destinará as emendas para o município A pois lá estão seus clientes eleitores, em detrimento da prevalência do interesse público que demandaria o repasse para o município B. Multiplique essa distorção por milhares de municípios.
Aprofundando ainda mais a análise, vale lembrar que nosso sistema político não limita o número de mandatos no Legislativo e não impede reeleições ao infinito. A que conclusão este método pode remeter?
É plausível detectar a pretensão nua e crua de perpetuação no poder, pelo clientelismo, sem meias palavras. Atitude obviamente afrontosa à nossa essência republicana.
Além disso, esse tipo de comportamento escancara violações aos princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa, que não mais ensejam responsabilização por improbidade administrativa em razão da reforma trazida pela Lei 14.230 de 2021 de cunho despenalizador.
Sendo assim, o que fazer? Educar politicamente a sociedade e instituir limite constitucional às reeleições legislativas (2 mandatos). Mas isso precisaria ser aprovado pelo Congresso.
Fonte: Poder360