Embora a política externa passe longe de ser um tema central nas eleições dos EUA (com exceção de guerras e questões envolvendo Israel), a disputa entre Kamala Harris e Donald Trump oferece caminhos distintos sobre como a maior potência econômica e militar do planeta se apresentará diante do mundo. Será uma escolha, como apontam especialistas ouvidos pelo GLOBO, entre a previsibilidade de Kamala e um Trump afeito a surpresas. O que não exclui posições similares em temas como Israel e, de certa maneira, a China.
Em entrevista ao GLOBO, Paulo Velasco, professor de Relações Internacionais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), diz acreditar que Kamala seguirá as linhas da diplomacia de Joe Biden, mas com adequações, em um cenário internacional em constante movimento.
— Não há razão para pensarmos em uma alteração dessa base de ações. E isso se veria, por exemplo, na atenção de Kamala ao espaço europeu ou no engajamento em agendas multilaterais.
O maior exemplo desse engajamento é a guerra na Ucrânia. Kamala defende a política de ajuda militar — principal ponto de atrito entre as agendas externas dela e de Trump —, afirmando que a vitória da Rússia seria uma ameaça a todo o mundo. A democrata defende ainda fortalecer a Otan, a aliança militar ocidental liderada pelos EUA que é a principal linha de apoio a Kiev.
Trump, por sua vez, pôs em xeque o envio de mais dinheiro à Ucrânia e chegou a dizer que o conflito estará resolvido antes mesmo de tomar posse, em falas que causaram arrepios em Kiev. Ideias ventiladas por aliados, como o bilionário Elon Musk, sugerem uma cópia dos fracassados Acordos de Minsk, o que significaria o congelamento do conflito, com a suspensão dos combates, a criação de áreas autônomas nas linhas de contato e o início de negociações.
Sobre a Otan, Trump quer repassar as responsabilidades, especialmente financeiras, aos europeus. Quando estava na Casa Branca, disse que os EUA não são mais “a polícia do mundo” e foi bem-sucedido na cobrança: hoje, 23 dos 31 membros da aliança atingiram o patamar de 2% do PIB em gastos de defesa. Quando foi eleito, em 2016, eram cinco.
Se a eleição de Kamala ou Trump aponta para caminhos distintos sobre a guerra na Europa, sobre a China há alguns pontos importantes de contato, como aponta Velasco. As tensões elevadas, centradas nas ações para conter o avanço de Pequim na Ásia (e em outras regiões, como a América Latina), devem se intensificar, não importa quem vença.
— A China ainda é um desafio para os Estados Unidos. Talvez não como um inimigo, como é o caso da Rússia — afirmou. — O próprio conceito estratégico da Otan já reconhece isso. Tivemos o Pivô para a Ásia, de Barack Obama [que reorientou o foco estratégico dos EUA do Oriente Médio e da Europa para a Ásia], depois Trump com uma retórica ainda mais crítica. Com Biden, essa relação não melhorou, pautando-se pelas divergências.
Um exemplo dessas similaridades é a continuação, por Biden, da pressão iniciada por Trump em sua “guerra comercial”, marcada pela adoção de tarifas que somaram US$ 360 bilhões (R$ 2,1 trilhões), pela restrição de acesso a tecnologias de alto valor agregado e limitações a empresas chinesas nos EUA. Kamala tem dito que manterá esse curso.
Caso volte à Casa Branca, Trump promete reforçar o arsenal econômico contra Pequim, elevando para até 60% as tarifas sobre produtos chineses. Para o ex-presidente, a ideia é “eliminar completamente a dependência da China em todas as áreas críticas”.
— Imagino que Kamala como presidente manterá uma relação de desconfiança, mas mantendo determinadas pontes de diálogo — afirmou ao GLOBO Tanguy Baghdadi, professor de Relações Internacionais e criador do podcast Petit Journal. — Já Trump, não. Ele tem a ideia da China como uma adversária perfeita: é um país comunista, muito competitivo, com bombas nucleares, uma potência global e que é aliada da Rússia.
Sobre Taiwan, ambos parecem concordar com a política de “uma só China”, pela qual reconhecem Pequim como o único governo chinês, comprometem-se a não apoiar a independência da ilha, vista como uma província rebelde por Pequim, mas se reservam o direito de manter uma “robusta relação” com Taipé. Mas cada qual à sua forma.
Kamala pretende fortalecer as alianças na região, com acordos que incluem ações conjuntas para conter o avanço militar chinês, mas sem se comprometer com uma intervenção direta em caso de ataque chinês. Já Trump disse, em entrevista à Bloomberg, em julho, que os EUA “não são uma empresa de seguros” e que Taiwan deve pagar pela própria segurança.
Se há dúvidas sobre a Ucrânia e Taiwan, o republicano deixou claro seu apoio a Israel. Com frequência tem afirmado que, caso estivesse na Casa Branca, o ataque do Hamas e a guerra em Gaza não teriam acontecido. Caso eleito, deve intensificar a ajuda aos israelenses.
— Muito provavelmente Trump vai avalizar tudo que Israel precisar e depois tentar obter alguma concessão, como uma aproximação com a Arábia Saudita. Israel sairá muito fortalecido se Trump vencer — disse Baghdadi.
Já Kamala, mesmo antes de ser confirmada como candidata, fez críticas à catástrofe humanitária em Gaza, e o governo Biden tem pressionado Israel para que aceite um cessar-fogo no enclave e também no Líbano. Mas nada indica que serão tarefas simples.
— Creio que [Benjamin] Netanyahu [premier de Israel] será forçado a recuar caso ela vença. Mas ele vai manter ao alcance da mão todos os avanços que obteve enquanto a eleição não chega, para conseguir algo depois que ela for eleita. Hoje ele está em uma posição mais favorável para negociar — opinou Baghdadi.
Sobre o Irã, não há perspectivas de mudanças em curto prazo. Trump, que no mês passado chegou a sugerir que Israel atacasse instalações nucleares, como forma de retaliação ao ataque com mais de 200 mísseis por Teerã, promete intensificar as sanções adotadas por ele em 2018 e ainda em vigor. De forma similar, Kamala disse que o regime dos aiatolás “é o maior adversário” dos EUA, e não sinalizou um retorno à mesa das negociações.
Se um governo de Kamala poderia soar como uma continuação do que fez Biden, Trump, como mostra seu passado de decisões intempestivas e até midiáticas, seria (mais uma vez) um líder imprevisível, que emula ideias apresentadas pelo então empresário Donald Trump em um livro de 1987, “A Arte da Negociação” e se lança em diálogos complexos, sem garantia de sucesso.
Em 2017, como revelou o ex-chefe de Gabinete do republicano, John Kelly, Trump cogitou usar uma arma nuclear contra a Coreia do Norte — um ano depois, estava apertando a mão do líder do país, Kim Jong-un, uma interação que criou uma bela amizade, mas não levou a resultados concretos na Península Coreana. Já os Acordos de Abraão, que normalizaram os laços entre Israel e os países árabes, foram um exemplo bem-sucedido de apaziguamento.
— Essa lógica do poder de negociação dos EUA é algo muito importante para Trump e poderá ser ampliada se ele ganhar. Basta ver algumas promessas que fez, como sobre encerrar a guerra [na Ucrânia] com um telefonema — conclui Velasco.
Fonte: O Globo