Soldador na pujante indústria aeroespacial no Arizona, Erik Kranz, de 31 anos, abandonou o Partido Democrata e torce por uma segunda temporada de Donald Trump na Casa Branca. Educadora e assistente social de origem panamenha, Kenia Daniels, 40, votará pela primeira vez nos democratas por enxergar na vice-presidente Kamala Harris a retidão moral e a defesa da democracia que não encontra no candidato de seu partido.
Sem filiação partidária, Katie Walton, 32, pediu licença do trabalho na Califórnia, de clara maioria democrata, e registrou 500 pessoas em duas semanas no Arizona para engordar os votos em Kamala no estado decisivo. E o bartender Shawn Baker, 31, encontrou-se no movimento populista de direita Faça os Estados Unidos Grandes Novamente [Maga, na sigla em inglês] após militar para o esquerdista Bernie Sanders na década passada, já decidido a combater a “política mofada dos gabinetes”.
Com percepções e anseios radicalmente diversos sobre o país em que vivem, os quatro eleitores compareceram aos derradeiros atos públicos de Kamala e Trump no estado, que entregará 11 desejados votos no Colégio Eleitoral a quem tiver mais votos. Com suas movimentações, ilustram a dimensão da divisão dos americanos, em uma disputa não apenas polarizada, mas com potencial de embaralhar as coalizões dos partidos majoritários e influenciar o jogo político em âmbito global.
Estrategistas dos dois partidos destacam que o Arizona respira diariamente os temas que os eleitores em todo país apontam serem centrais para decidir o voto — a economia, com inflação alta na primeira metade do governo Biden e o aumento histórico do preço dos imóveis na Grande Phoenix; a crise migratória, com a entrada recorde de imigrantes irregulares pela fronteira do estado com o México até o ano passado; e a decisão, pelo voto, de incluir ou não na Constituição estadual a garantia ao aborto, retirada no âmbito federal pela Suprema Corte, após indicações de juízes conservadores por Trump.
Se os dois primeiros temas energizaram a militância republicana local, o último impulsionou os democratas, especialmente nos subúrbios de Mesa, Chandler e Glendale. Com Phoenix, eles fizeram da área metropolitana do estado a de maior crescimento populacional na última década.
Na noite de quinta-feira, em uma arena com capacidade para quase 20 mil pessoas lotada, Baker aponta para a multidão que veio acompanhar uma entrevista ao vivo de Trump como prova de que, “se perdermos aqui, é fraude, de novo”.
Há quatro anos, embora jamais tenha reconhecido, o republicano foi derrotado por Joe Biden tanto no voto popular quanto no Colégio Eleitoral. O atual presidente teve mais votos também no Arizona, que, desde o realinhamento dos partidos majoritários, após a luta pelos direitos civis, nos anos 1960, só votara democrata uma vez, em Bill Clinton, em 1996. A frente de Biden foi de 10.500 votos, pouco mais da metade do público no evento trumpista.
— E agora somos ainda mais fortes do que em 2020, pois votam não só em Trump, mas no que nós, na militância, apelidamos de Os Vingadores, com Elon Musk e Robert Kennedy Jr. em futuros ministérios. O sobrinho de JFK diz que não deixou o Partido Democrata, mas foi abandonado por ele. Tenho a mesma sensação ao ver os Cheney e os Bush com Kamala. O lado de lá é hoje a representação do status quo enquanto fingem defender as minorias — diz Baker.
Atraída pela mensagem de união nacional de Kamala, Kenia discorda e se moveu no sentido contrário. Ela encarou o sol a pino do deserto com suas filhas Eleonor, 4, e Uena, 3, para ir ao evento lotado de Kamala, no mesmo dia, a 13 minutos de carro do que seu adversário comandou cinco horas mais tarde.
— Coloquei o país e o futuro de minhas meninas na frente do partido. Lugar de abusador não é na Presidência, mas na cadeia. E o evento dele em Nova York, em que porto-riquenhos foram classificados de “lixo”, foi um ataque a todos nós latinos — afirmou a cristã devota que concorda que o direito ao aborto é questão de saúde pública, e não de dogmas individuais.
No Arizona, eleitores latinos são 25% do eleitorado. Mas pesquisas captam a deserção de hispânicos do flanco democrata. De origem mexicana, o funcionário público Anthony Ramires, 27 anos, voluntariou-se por Kamala justamente após perceber que muito mais conhecidos seus iriam votar em Trump este ano:
— São filhos e netos de mexicanos que compraram a ideia de que, quando Trump fala das pessoas em situação irregular como animais, está se referindo a outra classe de latinos, que não os inclui. Muitos votarão na terça no democrata à esquerda Ruben Gallego, que provavelmente será o primeiro senador latino do Arizona, e no ex-presidente, pois sofreram no bolso nos anos Biden.
A média das pesquisas mostra Trump com 49,2% e Kamala com 46,9% no Arizona. Para o Senado, Gallego tem vantagem de 3,9% sobre a ex-apresentadora de TV Keri Lake, que não reconheceu sua derrota, por 17.117 votos, há dois anos, para a governadora democrata Katie Hobbs.
Os novos eleitores do estado, em sua maioria oriundos dos majoritariamente democratas Califórnia, Colorado, Washington e Oregon, votam no condado de Maricopa, que concentra 67% do total e é onde se define quem vencerá no Arizona. É lá onde a campanha democrata tem buscado novas eleitoras para equilibrar a perda no flanco latino.
— A mensagem de que, independentemente de sua crença religiosa, o governo não tem de se meter nos direitos reprodutivos das mulheres ecoou nas eleitoras que registrei — conta Katie Walton.
O comício de Kamala tinha entrada gratuita. Já a conversa ao vivo do ex-presidente com o apresentador trumpista Tucker Carlson era evento pago, com renda voltada para os afetados pelos furacões Milton e Helene. As cadeiras mais baratas, a R$ 175, foram ocupadas em sua maioria por homens brancos.
Entre eles, Erik Kranz. O soldador cresceu em uma família democrata no Minnesota, estado governado por Tim Walz, vice de Kamala. Descobriu-se um libertário conservador ao migrar para o Arizona, onde, aliás, ocorreu o primeiro comício do Maga, em 2015.
— Fico feliz em não apoiar mais um partido que virou as costas para os homens. E não odiarei quem eu sou para ter a aprovação deles – diz.
Pesquisas revelam a dificuldade da democrata em aumentar seu apelo entre os homens, assim como Trump é mais rejeitado pelas mulheres. No evento com Carlson, o ex-presidente subiu o tom da retórica contra uma ex-aliada, a ex-deputada Liz Cheney, que apoia Kamala. O tom foi tão bélico que o advogado-geral do Arizona, um democrata, iniciou estudos preliminares sobre possível ameaça à vida da filha do ex-vice-presidente republicano Dick Cheney.
Além do registro testemunhal da misoginia contra Kamala e do histórico factual de episódios de abuso do ex-presidente, chama a atenção a disparidade entre os gêneros nas pesquisas se acentuar entre os mais jovens. Se comprovada nas urnas, será, e não só no Arizona, uma das características centrais da disputa deste ano, que sugere uma nova filigrana na polarização a ser dissecada nos próximos anos por estrategistas das duas coalizões.
Fonte: O Globo