Crise entre Brasil e Venezuela é fruto de relação tóxica alimentada pelo próprio Lula

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ditador venezulano Nicolás Maduro durante recepção no Palácio do Planalto em maio
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ditador venezulano Nicolás Maduro durante recepção no Palácio do Planalto em maio — Foto: Brenno Carvalho/O Globo

Os manuais de psicologia definem um relacionamento tóxico como aquele em que um dos lados ofende constantemente o outro com agressões, humilhações e por vezes violência física. Em geral, o ofensor pede perdão e promete mudar de comportamento, mas depois o ciclo recomeça, diante de uma vítima incapaz de reagir. Relações bilaterais não são namoro, e movimentos diplomáticos deveriam ser guiados por estratégia e racionalidade. Mas tudo na novela entre Brasil e Venezuela lembra a história de uma relação abusiva.

No último capítulo, nesta quarta-feira, Nicolás Maduro chamou seu embaixador para consultas, passo que pode ser seguido pelo rompimento de relações, e o presidente da Assembleia Nacional da Venezuela enviou para a aprovação dos parlamentares uma moção declarando persona non grata o assessor especial do presidente Lula, Celso Amorim.

O chilique diplomático foi uma reação ao veto brasileiro à entrada da Venezuela no grupo de parceiros do Brics, bloco econômico de que também são protagonistas Rússia, China, Índia e África do Sul.

Maduro apareceu de surpresa na reunião da semana passada que aprovaria os novos parceiros em Kazan, na Rússia, para tentar forçar sua entrada, mas voltou para casa humilhado. Numa entrevista no evento, o próprio Vladimir Putin disse que era “impossível” incluir a Venezuela sem consenso, em referência à posição do Brasil. Dias depois, Maduro acusou o governo Lula de agressão.

Quem acompanha a relação de Lula e Maduro tem o direito de se perguntar como foi que ela se deteriorou tão rapidamente. Desde a transição, Lula se propôs a fazer diferente de Bolsonaro, que retirou da Venezuela o embaixador e outros sete diplomatas por não reconhecer o governo Maduro.

O diagnóstico era que as hostilidades agravaram o isolamento da Venezuela e tornaram o país palco de “guerra fria” opondo Estados Unidos a Rússia e China — uma situação que só seria revertida com diálogo.

Desde então, o que não faltou foi conversa e afago. Lula defendeu Maduro de todos os modos possíveis. Disse que a Venezuela era uma democracia porque faz muitas eleições, afirmou que o conceito de democracia era relativo e ainda exortou a oposição a Maduro a não “ficar chorando” por seus candidatos terem sido sistematicamente bloqueados pelo regime.

Em maio de 2023, recebeu Maduro com tapete vermelho em Brasília e sugeriu a inclusão da Venezuela no Brics. Em outubro, diante da desconfiança generalizada sobre a confiabilidade das eleições que se avizinhavam, enviou Amorim a Barbados para negociar um acordo entre oposição e governo por eleições limpas.

O acordo foi descumprido sem a menor cerimônia. Mesmo assim, há exatos três meses, enquanto opositores eram presos e o país mergulhava no “banho de sangue” que Maduro prometera caso não ganhasse as eleições, Lula passou pano:

“Estou convencido de que é um processo normal, tranquilo, o que precisa é as pessoas que não concordam terem o direito de provar que não concordam, e o governo tem o direito de provar que está certo”, declarou o presidente.

Corta para a última terça-feira, quando Amorim disse na Câmara dos Deputados que houve “quebra de confiança” em Maduro, pois ele prometera entregar as atas de votação da eleição presidencial e nunca entregou. Ainda assim, recusou-se a classificar a Venezuela como ditadura, porque, embora o governo Lula “hoje em dia” seja crítico ao regime, não é um “esporte rentável ficar classificando os países”.

Não é novidade para ninguém que Maduro não está a fim de conversar, e sim de mandar. Embaixadores dizem nos bastidores que Lula, que pelo jeito se enganou a respeito de seu poder e influência, está irritado com o ex-companheiro. Mas certamente não foram o ego ferido ou a preocupação com a democracia as únicas razões para a guinada sobre a Venezuela em plena semana de eleições municipais.

O problema é que, agora, Lula e Amorim terão muita dificuldade para se desvencilhar da armadilha diplomática que eles mesmos criaram ao bancar Maduro perante o mundo e o eleitorado brasileiro. E já está contratado novo constrangimento para o final de 2025, a meses da eleição presidencial de 2026, quando o Brasil sediará a próxima reunião do Brics, e Maduro deverá tentar entrar no grupo novamente.

Enquanto isso, diplomatas e políticos ligados ao governo tentam ver no fato de Maduro até agora não ter atacado Lula diretamente um sinal de que ainda existe brecha para acordo. É bem assim que funcionam os relacionamentos tóxicos.

Fonte: O Globo

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