Como Trump usou seus problemas com a Justiça para impulsionar a campanha

Presidente eleito dos EUA, Donald Trump, durante discurso no Michigan
Presidente eleito dos EUA, Donald Trump, durante discurso no Michigan — Foto: ROBERTO SCHMIDT / AFP

Após o debate entre Donald Trump e a vice-presidente Kamala Harris, a avaliação da campanha republicana era de que o mau desempenho do bilionário no programa assistido por 67 milhões de pessoas e a cobertura negativa da mídia serviriam de impulso para a adversária. No entanto, a primeira pesquisa mostrava o contrário: Kamala ganhou em alguns atributos estreitos, como simpatia, mas Trump não perdeu terreno na disputa.

— Nunca vi nada parecido — confidenciou Tony Fabrizio, um dos líderes das pesquisas de opinião da campanha, durante uma ligação com outros membros do alto escalão.

Isso foi mais uma prova da durabilidade de Trump ao longo de quase uma década na política e de sua capacidade de desafiar as leis da gravidade. Ele superou vulnerabilidades políticas aparentemente fatais — quatro indiciamentos criminais, três processos caros, condenação por 34 crimes graves, infinitas tangentes imprudentes em seus discursos — e transformou pelo menos algumas delas em vantagens distintas.

A vitória eleitoral de Trump se resume a uma aposta essencial: de que suas queixas poderiam se fundir com as do movimento “Make America Great Again”, abreviado como MAGA, ou na tradução livre do inglês para o português “Torne a América Grande Novamente”, e então com as do Partido Republicano, e por fim com mais da metade do país.

Sua foto de fichamento se tornou uma camiseta mais vendida. Sua condenação criminal inspirou US$ 100 milhões, o equivalente a mais de R$ 568 milhões, em doações em um dia. As imagens dele sangrando após uma tentativa frustrada de assassinato se tornaram o símbolo do que os apoiadores viam como uma campanha do destino.

— Deus poupou minha vida por um motivo — disse Trump em seu discurso de vitória na quarta-feira. — Vamos cumprir essa missão juntos.

Por vezes, o republicano era tão rude e autoindulgente em seu discurso que os assessores se perguntavam se ele estava testando o quanto os eleitores tolerariam. Mas, na verdade, Trump aproveitava com sucesso a raiva e a frustração que milhões de americanos sentiam sobre algumas das instituições e sistemas que ele próprio logo controlará.

— As elites não conseguem lidar com o quão alienadas estão do país — disse Newt Gingrich, ex-presidente da Câmara e conselheiro informal do presidente eleito.

Mais do que a retórica alinhada com os anseios de eleitores insatisfeitos, que o transformaram em um recipiente para sua raiva, o sucesso do magnata nas urnas se deveu, em parte, a decisões estratégicas tomadas por quase quatro anos pela equipe liderada pela veterana Susie Wiles, anunciada como sua chefe de Gabinete.

O time de Trump planejou maneiras de poupar recursos para uma blitz de anúncios no final da campanha, abandonou o tradicional corpo a corpo e apostou em uma equipe pequena e paga, com o apoio de voluntários. Os assessores apostaram também na mobilização do eleitorado masculino, que costuma votar menos do que as mulheres, mas desta vez compareceram. Além de emplacarem uma estratégia de reduzir a larga vantagem dos democratas entre os eleitores negros e latinos.

O modo como Trump venceu é também a história de como Kamala perdeu. Ela foi prejudicada pelos baixos índices de aprovação do presidente Joe Biden e lutou para se distanciar dele aos olhos dos eleitores que ansiavam por uma mudança de direção. A democrata teve pouco mais de três meses para se reapresentar ao país e vacilou em como — e quanto — falar sobre Trump.

Primeiro, ela e seu companheiro de chapa, Tim Walz, tentaram minimizá-lo, ridicularizando-o como “estranho” e “não sério”, deixando de lado os graves avisos de Biden de que Trump era uma ameaça existencial à democracia americana. Em seguida, concentrou em uma mensagem populista: Trump se preocupava apenas com seus amigos ricos, enquanto ela reduziria os preços para as pessoas comuns. Já no fim da campanha, Kamala voltou a se movimentar e tratou Trump como um “fascista”, retomando a ameaça existencial que Biden havia invocado.

Contudo, nem todas as decisões tomadas por Trump foram geniais porque ele venceu, e nem todas as decisões tomadas por Harris foram ruins porque ela perdeu. Mas em uma corrida eleitoral de um país tão dividido, Trump e sua equipe tomaram as decisões certas em quantidade suficiente.

Para a maioria dos políticos, a condenação de Trump por 34 acusações criminais relacionadas a pagamentos de propina a uma atriz pornô cairia como uma bomba em suas candidaturas. Em vez disso, pequenos doadores despejaram US$ 50 milhões nos cofres do republicano em 24 horas. Além disso, seu principal comitê foi informado pelo banco de uma transferência eletrônica de US$ 50 milhões no dia seguinte à condenação, do bilionário recluso Timothy Mellon.

O “dia de US$ 100 milhões” ajudou a reduzir o abismo financeiro que Trump estava enfrentando. Uma decisão surpreendente da Comissão Eleitoral Federal permitiu que os candidatos, pela primeira vez, se coordenassem com comitês financiados por bilionários, e a turma de Trump rapidamente o fez, embora James Blair, o diretor político da campanha, tenha sido amplamente questionado por agentes veteranos de ambos os partidos. Ninguém sabia quão bem esses grupos externos e seus agentes mercenários se sairiam para persuadir as pessoas a votar.

A campanha de Kamala havia passado meses contratando 2.500 funcionários e abrindo 358 escritórios nos estados do campo de batalha — enormes custos fixos que a campanha de Trump não teve de arcar. No último fim de semana, cerca de 90.000 voluntários democratas bateram em mais de 3 milhões de portas. A equipe acreditava que infraestrutura superior e seu exército de fiéis fariam a diferença.

Há muito tempo, Trump estava nervoso sobre a questão do aborto, por considerar que ela tinha o potencial de afundar sua campanha. Então, o republicano decidiu deixar o assunto para os estados e não disse quantas semanas considerava apropriadas, decepcionando alguns conservadores, mas tornando mais difícil para os democratas usarem a questão contra ele.

A abordagem do Trump em relação ao gênero não poderia ter sido mais diferente de Kamala. Os dados de sua equipe mostraram que o maior retorno sobre o investimento seria obtido por um grupo que não votava com frequência: homens mais jovens, incluindo homens hispânicos e negros que estavam lutando contra a inflação, alienados pela ideologia de esquerda e pessimistas em relação ao país.

A campanha de Trump comprometeu seus recursos limitados, incluindo o tempo do candidato, para se comunicar com esses jovens, abraçando uma imagem masculina. Ele passou relativamente pouco tempo em entrevistas para a grande mídia e, em vez disso, gravou uma série de entrevistas em podcast com comediantes, homens e outras personalidades voltadas para este público-alvo.

Do outro lado, a equipe de Kamala estava se esforçando igualmente para mobilizar o eleitorado feminino na disputa nacional, mostrando as histórias de mulheres que sofreram emergências médicas em estados onde os republicanos haviam promulgado proibições rigorosas ao aborto.

Cerca de uma semana após o debate de setembro, Trump começou a gastar muito em uma propaganda de TV que condenava Kamala por sua posição em um tópico aparentemente obscuro: o uso de fundos do contribuinte para financiar cirurgias para presidiários transgêneros.

— Todos os presos transgêneros do sistema penitenciário teriam acesso [às cirurgias]— dizia Kamala em um vídeo de 2019.

Trump estava liderando as duas questões mais importantes da disputa, a economia e a imigração, mas, mesmo assim, decidia mudar de assunto. Adotou o slogan: “Kamala é para eles/elas. O Presidente Trump é por você”, um anúncio antitrans de sucesso tão grande a ponto de surpreender alguns de seus assessores.

Essas peças de propaganda atingiram o cerne do argumento de Trump: de que Kamala era “perigosamente liberal”. Uma vulnerabilidade com a qual a equipe da democrata estava mais preocupada. Os anúncios foram eficazes com homens negros e latinos, segundo a equipe de Trump, mas também com mulheres brancas suburbanas moderadas — o mesmo grupo que Kamala tentava mobilizar com anúncios sobre aborto.

No início de outubro, a equipe de Trump vinha tentando, há semanas, enfraquecer os esforços de Harris para se apresentar como a candidata da mudança. Kamala havia escolhido o slogan “A New Way Forward”, em tradução livre “Um novo caminho a seguir”, e estava pressionando um argumento geracional contra Trump, agora o homem mais velho já eleito presidente.

Entretanto, a estratégia de Kamala começou a ruir quando foi questionada em um talk show se teria feito algo diferente do Sr. Biden. Depois de uma longa paula, ela respondeu:

—Não há nada que me venha à mente.

Esse trecho foi disparado para mais de 10 milhões de celulares americanos pela equipe dos republicanos.

Fonte: O Globo

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