No Brasil, com o clima predominantemente quente, os atuais 36 milhões de unidades de ar-condicionado vão se multiplicar e chegar a 160 milhões em 2050, alta de quase 350%. Essa é a projeção, levando em conta o aumento do PIB apenas, feita recentemente pela Agência Internacional de Energia (AIE). No mundo, o salto será de 2 milhões para 5,5 milhões.
Dos muitos desafios que a crise do clima impõe à economia global, nenhum é tão representativo da complexidade do problema quanto o ar-condicionado. O eletrodoméstico cada vez mais presente em todo o mundo já gera sozinho 2,7% das emissões globais de gases de efeito estufa e consome 7% da eletricidade da Terra. Torna-se, cada vez mais, parte do problema que ele mesmo busca aliviar.
Com mais ondas de calor acima de 30°C, não surpreende a demanda por ar-condicionado disparar. Um relatório recente da AIE prevê que o número de aparelhos funcionando no mundo salte dos atuais 2 bilhões para 5,5 bilhões em 2050.
Mesmo com uma melhora na eficiência dos aparelhos, num cenário sem intervenções, o gasto de energia vai dobrar, com esses aparelhos consumindo 14% da eletricidade mundial em 2050. O acréscimo previsto até 2035, apenas, é equivalente à energia elétrica consumida hoje em todo o Oriente Médio.
Cerca de 90% dessa demanda, diz a agência, estão em economias emergentes, como Índia, China e Brasil. Nas cidades brasileiras, basta olhar para cima e ver os condicionadores de ar pipocarem das fachadas dos prédios, tornando-se parte da paisagem. Em países emergentes, espera-se incremento num ritmo ainda mais acentuado.
— Hoje o ar-condicionado não é mais visto tanto como produto de luxo para conforto, ele impacta em horas de trabalho e no desempenho das pessoas, reduz o estresse térmico e tem impacto positivo em saúde também, sobretudo da população idosa — diz Thiago Pietrobon, executivo de uma empresa do setor que lidera a área ambiental da Associação Brasileira de Refrigeração, Ar-Condicionado, Ventilação e Aquecimento (Abrava).
No começo deste ano, a Abrava projetava venda de 4,9 milhões de unidades, mas a onda de calor no final do inverno em várias cidades populosas do país acelerou a procura. A Eletros, associação de fabricantes do setor, diz que até julho o volume entregue ao varejo foi 83% maior que no mesmo período de 2023, totalizando 3,28 milhões de unidades em sete meses. E depois disso ainda houve outra onda.
— A resposta é muito rápida quando ocorre um pico de calor como esse do fim de agosto. Não foi o calor mais extremo deste ano, mas suficiente para acelerar ainda mais as vendas, numa velocidade acima do normal — afirma Pietrobon, que comemora o momento favorável para o setor, mas reconhece que é preciso planejamento para que o boom de ar-condicionados não impacte ainda mais o clima.
Os aparelhos de ar-condicionado geram gases de efeito estufa de duas maneiras. A primeira é pelo uso de hidrofluorcarbonetos (HFCs) na tecnologia de resfriamento por compressores. Os HFCs substituíram os antigos clorofluorocarbonetos (CFCs), usados em eletrodomésticos mais antigos. Estes outros gases foram banidos num tratado implementado em 1989, o Protocolo de Montreal, pois prejudicavam a camada de ozônio, que protege o planeta da radiação ultravioleta.
Os HFCs não deterioram o ozônio, mas são gases de efeito estufa muito poderosos. Por isso, um outro tratado internacional, a Emenda de Kigali, entrou em vigor em 2019 prevendo descontinuar gradualmente os HFCs. Aparelhos com esses gases só poderão ser produzidos até 2045.
A outra fonte de emissões dos refrigeradores de ar tem solução mais difícil: a alta do consumo de energia. Se a projeção da AIE se materializar, um planeta com 5,5 bilhões de aparelhos precisará de mais energia para operá-los, e, atualmente, mais da metade da eletricidade global ainda vem da queima de combustíveis fósseis, que emitem dióxido de carbono (CO2), principal vilão do aquecimento da Terra.
No Brasil, o cenário é um pouco diferente. O país possui mais de 90% de sua energia de fontes renováveis, sobretudo hidrelétrica. Entretanto, o acionamento de usinas térmicas a gás tem sido cada vez mais comum, sobretudo em períodos de muito calor e seca, quando reservatórios de água das grandes barragens estão mais vazios. E é justamente nessas horas que a demanda por refrigeração de ambientes sobe, puxando para cima o gasto de uma eletricidade “suja”.
Por causa disso, entidades sociais e ambientalistas pressionam o governo e a indústria para o país adotar padrões mais rígidos de eficiência energética. O Brasil já possui o programa Procel e uma política de etiquetagem que orienta o consumidor a escolher produtos mais econômicos, mas se as exigências não continuarem sendo atualizadas, o impacto ambiental do ar-condicionado não será freado, alerta Rodolfo Gomes, diretor da Iniciativa Internacional de Energia (IEI) no Brasil:
— A política energética tem que conversar com a política industrial e vice-versa.
Ambientalistas defendem que o esforço da indústria para substituir os aparelhos baseados em HFC precisa embutir também uma exigência para que gastem menos energia. Os aparelhos mais evoluídos, com um dispositivo interno chamado “inverter” (que faz o compressor funcionar em diversas intensidades), são muito mais econômicos que os convencionais, que precisam desligar e religar para controlar a temperatura.
Hoje, no Brasil, a diferença de preço entre os dois tipos já torna vantajosa a compra do “inverter”, pois o custo adicional é compensado pela economia na conta de luz.
A inovação, porém, não dá conta de segurar o aumento na demanda por eletricidade no planeta, e para isso o ar-condicionado precisará se tornar ainda mais econômicos, explica Rodrigo Bernardello, professor da Faculdade de Engenharia Industrial (FEI):
— Ainda dá para melhorar a eficiência dos aparelhos, só que isso vai ter um certo limite, imposto pela física termodinâmica. Eu diria que a gente não está nem muito perto nem muito longe desse limite. Talvez a gente consiga gastar metade da energia que se gasta hoje para resfriar uma sala do mesmo tamanho.
Um corte de 50% no consumo seria algo extraordinário, mas ainda assim não conseguiria compensar o aumento de 280% no número de aparelhos projetado pela IEA para o planeta.
A preocupação com aparelhos domésticos também existe no setor corporativo, porque sistemas de ar-condicionado centrais, de prédios comerciais, são tipicamente mais eficientes e têm menos margem para evoluir. Além disso, o setor empresarial também passa por um ciclo de aumento de demanda com digitalização da economia, que faz aumentar o número de data-centers onde grandes computadores precisam de ar frio para funcionar.
Bernardello, que não possui (ainda) ar-condicionado em casa, recomenda um uso consciente do aparelho, em ambientes fechados adequadamente, para não consumir energia demais.
— Um ar-condicionado de 12 mil BTUs (3.500 W) pode consumir até R$ 330 a mais na conta de luz se usado na potência máxima. Por isso, o ideal é colocar na maior temperatura possível que a pessoa fique confortável. Para cada 1°C que deixamos a mais, a economia na conta de luz pode variar de 3% a 10% — estima o engenheiro.
Sob condição de calor moderado, o ventilador é a opção mais recomendada, porque gasta muito menos energia e proporciona um conforto razoável.
O problema ambiental e tecnológico que desafia os aparelhos de ar-condicionado vale também para as geladeiras, mas o primeiro é mais preocupante. Por ser produto de primeira necessidade, a geladeira já está perto do teto de sua demanda “per capita”, mas o ar-condicionado não.
Um levantamento da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) indica que, em residências brasileiras com renda de dois a três salários mínimos por pessoa, um indivíduo consome em média 60 kilowatts-hora (Kwh) por ano com ar condicionado. Já na faixa de cinco a dez salários mínimos esse consumo é de 194 Kwh, ou seja, de 223% a mais. Quando se olha para a geladeira, essa diferença é de apenas 35% entre os dois níveis de renda.
Por isso, no plano social, a discussão sobre acesso ao uso de ar-condicionado passa por uma questão de “justiça climática”, quando muitas cidades vêm o termômetro ultrapassar os 35°C em ondas de calor. Com o aumento da renda, o barateamento dos aparelhos os torna acessíveis para quem rompe a barreira da classe D para a C, e com ele um alívio para o calor insalubre.
A desigualdade no acesso ao conforto térmico não é, porém, algo novo no país, sobretudo nas ilhas de calor dos centros urbanos.
— A mudança do clima é apenas um pequeno aspecto de algo que uma grande parte da população brasileira sentiu na pele desde sempre — diz Gomes, do IEI. — Quem vive nas periferias, em favelas, em habitações que são quentes pela própria configuração ou pelo ambiente construído, experimenta temperaturas altíssimas debaixo dos telhados.
Para o pesquisador, a discussão sobre acesso ao conforto térmico precisa ir além do debate sobre o aparelho de ar-condicionado. A construção civil precisa ser considerada, e padrões sustentáveis de edificações com ventilação e controle do sol precisam ser incentivados, ele afirma.
O setor público, por sua vez, pode evitar que uma urbanização descontrolada transforme as cidades em selvas de pedra sem vegetação, sem corpos d’água e sem sombra.
— A mudança climática, nesse caso, não trouxe algo totalmente novo: ela está exacerbando problemas antigos do Brasil — afirma.
Fonte: O Globo