‘Ainda choro quando lembro’: estudantes contam como tiveram a vida mudada pelo Enem, que terá 4,3 milhões em prova hoje

Morador da Baixada Fluminense, Matheus quer trabalhar na rede pública; já Rayane  é estudante  de jornalismo: 'O Enem é o que pode determinar o nosso futuro'
Morador da Baixada Fluminense, Matheus quer trabalhar na rede pública; já Rayane é estudante de jornalismo: 'O Enem é o que pode determinar o nosso futuro' — Foto: Fotos de arquivo pessoal

Os portões do local de prova onde o estudante Matheus Linhares faria o Exame Nacional de Ensino Médio (Enem), em 2016, fecharam só três minutos após sua chegada. Aos 18 anos, o jovem teve que correr para entrar a tempo na escola pública em que faria a prova, em Mesquita, na Baixada Fluminense. Suado, ele alcançou o objetivo. Não só de chegar a tempo de fazer o teste, mas de ser aprovado em uma das mais concorridas vagas do país, a de Medicina na UFRJ. Seria o primeiro dia de uma nova vida de Matheus — ainda cheia de dificuldades, mas com uma perspectiva totalmente nova. E é essa esperança que 4,3 milhões de pessoas carregam ao começarem suas provas hoje, a partir das 13h30, em 10 mil locais de aplicação pelo país.

— Me organizei para ir até a prova de Uber, mas tive um problema com a forma de pagamento. Tentei, então, ir de ônibus. O bilhete único estava descarregado. Corri muito para colocar a carga e pegar o ônibus. Cheguei em cima da hora. Senti medo de virar meme: ser um atrasado do Enem — lembra o jovem, sobre o episódio, que foi apenas mais uma das muitas dificuldades que enfrentou para conseguir encaminhar o futuro de sua família. — Tive um câncer aos 9 anos e minha chance de sobrevivência era de 50%. Passei meses internado. Quando estava curado, minha mãe, que é manicure e me criou sem a presença do meu pai, investiu na minha educação. Fiz escola pública toda a minha vida e consegui chegar na universidade com muito orgulho do que vivi até aqui.

Agora, o jovem divide o trabalho como técnico de enfermagem em um hospital na Zona Sul do Rio com as aulas no Hospital do Fundão. Após outras experiências no ensino superior interrompidas por dificuldades financeiras, o morador de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, sonha retribuir: quer atuar no Sistema Único de Saúde (SUS) para ajudar, quem, como ele e sua família, lida com dificuldade de acesso a serviços básicos.

— O médico que me atendeu na infância até tinha conhecimento. Mas ele era muito grosseiro. Ele falou para a minha mãe que eu ia morrer. Ele disse que eu tinha 50% de chance de viver, mas que era para ela apostar nos 50% de risco de morte. Minha mãe chorou muito com isso. Mas ela fez das tripas coração para eu sair daquela situação — lembra o jovem, que agora se emociona por motivos bem diferentes. — Choro até hoje quando lembro do momento que vi que passei na UFRJ.

Neste domingo, os inscritos vão encarar a primeira parte da prova, que tem 45 questões de Linguagens, 45 de Ciências Humanas e Redação. As provas começam às 13h30m e se encerram às 19h. Na semana que vem, são 45 de Matemática e outras 45 de Ciências da Natureza. Nesse dia, o teste termina mais cedo, às 18h30m.

É por meio dessa prova que se selecionam os calouros da maior parte das vagas das universidades federais e os beneficiados no programa do governo federal de bolsas nas instituições privadas, o Prouni. Conseguir acessar um desses caminhos faz muita diferença para o futuro dos candidatos: um estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ibre) mostra que trabalhadores com 16 anos ou mais de estudo (o equivalente ao superior completo ou além) ganham 126% a mais do que aqueles com ensino médio completo e superior incompleto.

— O Enem é o que pode determinar o nosso futuro — resume Rayane Azevedo, de 21 anos, filha de uma cozinheira escolar e de um pedreiro de Sorocaba (SP).

Após cursar dois anos do ensino médio em meio à pandemia, Rayane passou 2023 estudando num curso pré-vestibular gratuito e conseguiu, com a nota do Enem, uma bolsa pelo Prouni para estudar Jornalismo na Universidade de Sorocaba.

— Depois de viver o sentimento de conseguir a aprovação, eu senti que posso acreditar mais no meu potencial. Claro, sempre com os pés no chão. No momento, minha ideia é me dedicar para me transformar em boa profissional. Já tenho uma especialidade em mente, a área ambiental — conta a jovem.

Outro que já sabe o que quer para o futuro é Sandro Lúcio Nascimento Rocha, de 23 anos, que emocionou o Brasil em 2022 com um vídeo em que ia à lavoura em Caculé, no sudoeste baiano, contar ao pai agricultor que havia passado em Medicina na Universidade Federal da Bahia (UFBA). As imagens circularam o país e renderam ao jovem apoio de voluntários que até hoje contribuem para que ele possa continuar os estudos. Além disso, ele e os pais foram convidados para conhecer, em Salvador, o governador do estado, cargo que era ocupado por Rui Costa, atual ministro da Casa Civil do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

— A gente é movido por sonhos. Antes de passar na faculdade, meu maior sonho era poder estudar. Isso cresceu quando eu comecei a cuidar da minha avó, que tinha problemas de saúde, e eu sempre a acompanhava. Agora quero me formar e voltar para a minha cidade depois de fazer uma residência para ajudar as pessoas que vivem lá, principalmente as mais carentes. Seria uma forma de gratidão por toda a ajuda que eu tenho recebido — conta o jovem, que está no 6º período da faculdade.

Fonte: O Globo

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